Pérolas aos porcos (2)
Depois de receber um convite de um estranho cliente que afirma ser Jesus Cristo, um assessor de imprensa precisa decidir se vai agenciá-lo ou não
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Eu encarava calado os pratos de porcelana sujos com os restos do que um dia foi uma sardinha cheia de planos para o futuro. Meu prato estava impecável. Estava sem fome e desconcertado - por motivos óbvios. Trabalhei como ilusionista durante 5 anos e aquilo não parecia um truque. Se fosse, eu precisava representar o cara. Ele era bom. Se não fosse... espera, o que estou pensando?, reavaliei. Não é possível. Chris tinha ido ao banheiro e eu fiquei na companhia de uma série de perguntas. Lembrei do que Lúcia me disse em uma discussão, antes do divórcio, no nosso antigo apartamento, agora, soterrado de caixas de mudança. A bebida ainda vai foder com a tua cabeça. Já tinha fodido com a minha vida, mas será que ela tinha razão quanto ao meu cérebro? Será que o álcool percorreu meu sangue por tantas vezes a ponto de me fazer ter alucinações com o retorno de Cristo? Ou seria o resultado do punhado de pílulas para dormir que tomei ao longo das últimas semanas? Se Lúcia estivesse aqui, ela saberia me dizer. Antes que eu pudesse concluir minha espiral de pensamentos, Chris já estava de volta, enxugando as palmas das mãos na superfície da calça jeans.
— Rapaz, que absurdo o banheiro desse lugar. Nem Antipas faria isso com outro ser humano — comentou o suposto filho de Deus — E aí? Vamo de sobremesa? O cheesecake com goiabada daqui é um escândalo!
Eu ouvia um murmúrio de vozes à minha volta, que me chegavam incompletas, abafadas. Tudo girava feito um carrossel. Sentia fortemente o baque da bebida e parecia que tinha pegado uma trombose coronária, mas a verdade é que simplesmente não conseguia acreditar no que estava acontecendo. E Chris, sem se importar, prosseguiu:
— Escuta… eu estava pensando… Como você acha que eu devo chamar a terceira parte da Bíblia? Novo Novo Testamento não me soa comercial, sabe?
Fingi pensar em algo mesmo sem entender exatamente o que deveria dizer. Era como estar possuído por alguma entidade. As palavras não saiam.
— Você ainda não acredita em mim, né? — perguntou Chris, ligeiramente preocupado com o meu desconforto.
— Eu acho que eu bebi demais — confessei com tudo girando.
— Acredite, a sua reação foi a melhor que tive até agora. Você tinha que ter visto a cara do meu corretor quando tentei explicar quem era o meu fiador — disse Chris, soltando uma risadinha involuntária e apontando o indicador para os céus.
— O que é isso tudo?
— Eu sei o que parece, mas eu posso explicar — disse Chris dando um gole no vinho, como quem pega fôlego para uma longa história — Eu não posso entrar em detalhes, mas o fim está próximo.
— Ok... — reagi, indiferente, e gira, gira, gira.
— Sabe aquela história de que um dia Jesus voltaria, e não sei o que lá? Pois é, era verdade. Eu voltei. O problema é que desde que fui embora, as coisas mudaram. Muita gente tentou se passar por mim. Acredita você que, semana passada, eu bati boca com um pastor de rua que tentava me explicar meus próprios ensinamentos. O cara queria literalmente colocar palavras na minha boca. Uma loucura.
— Eu não consigo acreditar.
— Eu também não. Por isso dei um mata leão no maluco.
— Não. Eu não consigo acreditar que você é… Você sabe.
— Eu transformei água em vinho na sua frente! O que mais você precisa? Meu RG? Eu sou carpinteiro também. Posso te fazer uma cômoda, se preferir. Se você tiver um furúnculo aí também, eu posso cuidar dele.
— Tá — interrompi Chris, que não parava de falar — O que eu quero saber é: por que eu?
— Calma. Não vamos confundir as coisas. Você não é especial.
Eu já tinha escutado aquela frase algumas vezes, mas ouvir do filho de Deus, garanto, doeu um pouco mais.
— Desculpa dizer isso assim, mas é verdade. A única razão de você estar aqui é porque toda vez que eu ligava para algum escritório, batiam o telefone na minha cara.
— Mas por que você precisa de um assessor de imprensa?
— Para retornar com a minha carreira? — disse Chris, falando a frase pausadamente, como se fosse uma obviedade à qual ninguém questiona — Alô? Tem alguém aí?
— Mas existem pessoas melhores do que eu. Digo, seres humanos melhores.
— Certamente — rebateu Chris rapidamente, como se eu tivesse falado a afirmação mais estúpida do mundo.
— Mas eu não entendo. Como eu posso te ajudar?
— Olha… eu não entraria em contato se realmente não precisasse de ajuda. Não é fácil vender a ideia de que você é o cordeiro de Deus igual antigamente. Aquela coisa de que as pessoas devem amar e respeitar umas às outras, compartilhar bondades e trazer paz ao mundo, não cola mais. Eu preciso de views e likes! Antigamente eu me virava com 12 seguidores, hoje em dia, isso não dá nem pro cheiro! E é aí que você entra. Você vai cuidar das minhas redes sociais, agendar entrevistas e vender produtos.
— Produtos? — questionei levantando as sobrancelhas em um misto de surpresa e espanto, como se tivesse esbarrado em uma freira na rua.
— É, eu pensei que poderia ser interessante lançar todo mês um sermão impresso junto com um action figure dos apóstolos de brinde. Desse jeito, as pessoas vão sempre comprar os sermões até conseguirem a série completa.
Fiquei em silêncio avaliando incrédulo a última frase. Chris prosseguiu:
— Claro, não estou falando que vai ser fácil. Mas não é como procurar pelas tribos perdidas de Israel também. Certamente você vai dar conta do serviço.
Eu já não gostava do jeito que ele falava e começava a pensar que não era uma má ideia acertar um soco na cara daquele homem. Devia ser a bebida, que geralmente me deixava mais agressivo. Poderia ser apenas meu mau humor de sempre também. Ou, mais ainda, a dor de estômago que começava a sentir.
— A parte mais estranha de tudo isso é você ser um cara tão materialista. Não é como normalmente as pessoas te descrevem — disparei, sem piedade.
— Os pastores tinham que ter puxado alguém, não é mesmo? — explicou Chris sarcasticamente, deixando escapar uma risadinha — E aí? Onde eu assino?
— Assina o quê?
— O contrato, ora.
— Eu ainda não decidi se vou te agenciar.
— Olha… os únicos artistas mais populares do que Jesus Cristo são os Beatles e metade já morreu. É um bom negócio, pai.
— Como eu vou saber se você é quem diz ser?
— Tá bom — disse Chris, de saco cheio — Pergunta.
— Pergunta o quê?
— Vai. Pergunta. "Qual é o sentido da vida?" — disse fazendo aspas com as mãos.
— Eu não quero perguntar isso.
— Você quer saber se eu sou eu mesmo, certo? Então, pergunta. Anda.
— Ok… — respondi, receoso — Qual é o sentido da vida?
— É como um filme.
Depois de encarar o sujeito em silêncio por alguns segundos, achando que ele desenvolveria melhor a resposta, não me contive.
— É isso? Essa é a sua melhor resposta sobre o sentido da vida?
— O que você quer que eu diga?
— Qualquer coisa! Esse é o maior clichê que existe.
— Vamos com calma. Primeiro que clichês são populares por uma razão. Segundo, eu não estou autorizado a falar sobre isso com todo mundo.
— Você que sugeriu que eu perguntasse isso!
— Escuta… o que eu posso te dizer é o seguinte: a vida é como um filme. Deus é como se fosse o diretor. Satanás é o produtor executivo. E a humanidade é a parte de trás da fantasia de cavalo. E, ah, o casting fez um péssimo trabalho.
— Tá — respondi, tentando absorver aquela maluquice — Por que você não fala diretamente com as pessoas? Você poderia muito bem sair voando pela Avenida Paulista. Você não precisa de mim.
— Não é uma boa ideia, vai por mim. Veja bem, o ser humano é instintivamente impelido a destruição. A destruir a si mesmo e tudo à sua volta. A violência é basicamente o homem se recriando continuamente. Imagina o que aconteceria se as pessoas me vissem voando por aí. Você já assistiu Godzilla? Não se brinca com essas coisas.
— Eu não entendo.
— Tipo… você sabia que o dinheiro que os americanos investem em mísseis daria para reconstruir três países iguais aos que eles vão destruir? É sobre isso. Você acredita em ovnis? Já parou pra pensar por que os extraterrestres não se revelam? Porque, no fundo, no fundo, eles sabem que virariam estatísticas no Datena.
— É, mas…
— "Mas" o quê, Italo? — perguntou Chris já sem paciência, provando que essa definitivamente não era uma de suas virtudes — Que resistência é essa? Você é ateu por acaso?
— Eu só não sei o que fazer com essa informação…
— Você já tentou meditar?
— Não é isso… Como… Onde a felicidade se encaixa nisso tudo?
— Felicidade? Do que você está falando? A felicidade não deixa de existir por causa disso. É a gente que cria nossa própria felicidade e não trapaceando a natureza.
— Ok — pensei um instante, considerando não continuar com a frase — Suponhamos que eu assine um contrato com você. E se não der certo? Todas essas coisas que você quer e planeja. Produtos. Imprensa. Sucesso. E aí? Eu já tive muitas derrotas na vida, mas fracassar com o filho de Deus não está nos meus planos.
— Ah, claro. É isso. Entendi — disse Chris com um sorriso cínico no canto dos lábios — Você tem medo de fracassar.
Um frio atravessou minhas costas e tentei responder, mas apenas consegui gaguejar feito quem se depara com um fantasma. E, de certa forma, era isso mesmo.
— Eu achava que você não se importava com essas coisas — continuou Chris — Achava que você era um artista.
Aí. Ele tinha razão. Como Velocípede, o one-man show mais requisitado dos anos 90, ser um sucesso comercial não era algo que eu aspirava. Na verdade, eu nunca quis. Queria fazer arte, que me orgulhasse, em um nível íntimo e pessoal. Queria me conectar com algo que considerasse autêntico. É importante não se vender, pensava. E, sem perceber, foram exatamente essas palavras que escaparam involuntariamente da minha boca.
— É… É importante não se vender.
— Esse é um conceito estranho, Ítalo. Você sabe disso.
— Como assim?
— Você se lembra quando o Jim Morrison ficou putasso quando a gravadora usou a música do The Doors em uma propaganda? E onde está o Jim Morrison agora? Mortinho da Silva. O Bob Dylan, por outro lado, tá vivaço ganhando dinheiro fazendo comerciais da Pepsi. Esse ponto de vista seu é bem ultrapassado, meu caro.
— Eu não sei qual tipo de arte a gente tá falando aqui, mas arte, arte, só é arte quando existe um propósito maior do que… você sabe. E isso nunca será comercialmente viável.
— Desculpa, mas eu fico com o Cassavetes nessa. Ele falava que é totalmente normal se vender, contanto que você saiba por que está se vendendo. O cara fazia um programa de TV idiota e depois fazia Uma Mulher Sob Influência. O sujeito sabia o que estava fazendo, e, de fato, quando conheci ele, parecia alguém bem seguro de si.
— Você conheceu o Cassavetes?
— Claro! Quer dizer, ele certamente não esperava me conhecer tão cedo. Mas o cara bebia bastante. O que eu estou tentando dizer é que o verdadeiro problema é se vender por nada. Quando alguém diz que não quer fama, ganhar dinheiro e prêmios, está mentindo. É por isso que eu amo a Patti Smith. Sempre que alguém perguntava sobre isso, ela falava: "Prêmios? Quero ganhar todos eles!" Eu adoro essa mulher!
— Eu não gosto disso.
— Disso o quê?
— Disso… ser um profissional.
— Não tem nada de errado em ser um profissional, Ítalo.
— Claro que tem. Um profissional é quem tem uma obrigação com o outro em relação ao outro. É abdicar completamente de sua liberdade.
— Olha…
Chris respirou um segundo antes de falar o que eu precisava ouvir naquele instante. O problema é que, se antes tudo girava, agora, parecia o Pião da Casa Própria.
— Eu pesquisei sobre você antes de vir aqui. Você era esse cara famoso nos programas de auditório que depois caiu no ostracismo. Você, melhor do que ninguém, teve sucesso o suficiente para saber que o sucesso não vai te fazer feliz, e, mais ainda, você fracassou o suficiente para saber que o contrário também não significa nada. Então, o que você quer fazer? Você pode continuar vivendo essa mesma vida, encontrando clientes em restaurantes esquisitos, ou podemos começar uma coisa juntos sem esperar nada em troca um do outro.
Foi só o tempo de Chris terminar seu sermão que o restaurante girou por uma última vez, já que, no instante seguinte, eu estava vomitando todo o whisky na mesa.
Ou talvez apenas expurgando as mentiras que contei pra mim mesmo.
CONTINUA…
"Não tem nada de errado em ser um profissional, Ítalo.". Exato! Por que arte não pode ser uma profissão? É certo vender um iPhone, mas é errado vender uma piada?