Pérolas aos porcos
A vida não anda nada bem para o assessor de imprensa Ítalo, mas tudo muda quando ele recebe um convite de um cliente especial.
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O garçom repousou o copo com água sobre um guardanapo e o colocou em cima da mesa com um olhar de piedade. Depois do divórcio, tive que abrir mão das minhas bebedeiras diárias regadas a whiskey sours. Meus bolsos estavam mais vazios que as órbitas de um defunto e o ronco na minha barriga parecia o som de um dragão parindo óctuplos. Para mais, precisava me concentrar. Rasguei o plástico que envolvia o canudo e enfiei o tubo no recipiente. Olhei rapidamente o horário no Rolex com os ponteiros descascando. Quase meia-noite. O cliente estava atrasado, pra variar. Se há 20 anos alguém me falasse que eu estaria sentado naquela cadeira, com aquele terno, numa postura de "homem de negócios", certamente atiraria contra a minha própria têmpora. Eu era um profissional agora, e eu nunca quis ser um profissional. Eu odeio profissionais. Só de pensar nessa palavra sinto meu estômago dar cambalhotas. Eu precisava me acalmar ou talvez fosse apenas a doença do papai falando mais alto. O alcoolismo foi a única coisa que herdei do velho - além da escrivaninha no escritório e o apartamento na Aclimação. Tentava driblar esses pensamentos, mas era difícil. Anseios são os protetores de tela do cérebro. Isso quando não aparecem sem aviso prévio, tal qual um pop-up. Enquanto despejava o sachê de açúcar, instintivamente, avaliei todas as escolhas que me levaram até aquele restaurante. Lembrei de Lúcia. Nos últimos meses, telefonava para ela em horários impróprios da madrugada e discutia no etílico dialeto da dor o fim do nosso casamento, que havia fracassado há cerca de dois anos. A vida é uma espécie de universidade às avessas. Você aprende com os erros e nunca buscando as respostas certas. Então respirei fundo e encarei a situação como mais uma lição. Foram quinze minutos de uma disciplina digna de um samurai. Depois, corri o dedo pelo menu e procurei pela bebida mais barata.
Passava da meia-noite quando começava a ficar puto de verdade. Havia um bom número de pessoas bebendo café, comendo PFs e tomando cerveja. Sabia que o lugar era famoso pelo bolinho de carne e pelo espaço com mesas de carteado, dominó e sinuca, e por ter abrigado a colônia lituana nos anos 60. Mas não fazia a menor ideia do porquê o sujeito insistiu que a reunião acontecesse ali. Na ligação, ele omitiu detalhes e também não quis aborrecê-lo com perguntas. Não era questão de escolha. Eu tinha que fechar aquele contrato, do contrário, o meu gerente me premiaria pelo 10º mês consecutivo no cheque especial. Sentia fome e raiva. Sempre que aparecem 3 ou 4 vítimas mortas por aí, os jornais vão logo falando que é obra de um serial killer. Ninguém considera a possibilidade de alguém estar passando por um ano difícil. E foi justamente quando levei o pior whisky que já bebi na vida aos lábios que o fodido apareceu, me encarando do outro lado do salão, com um sorriso duro no rosto do tipo que só se encontra nos melhores manicômios.
— Ítalo? — perguntou o homem de cabelo desgrenhado, na altura dos ombros, que reforçava qualquer suspeita de uma possível ligação com uma seita satânica.
— Sou eu. Christiano, né? Muito prazer! — respondi prontamente, já que não queria que ele ficasse parado ali a noite inteira. Sorrimos e apertamos as mãos num gesto amistoso, receptivo e cheio de falsidade da minha parte.
— Pode me chamar de "Chris" — corrigiu Christiano, ou melhor, Chris, também conhecido como "o último membro da Família Manson".
Chris foi logo puxando uma cadeira e se desculpando pelo atraso.
— Não se preocupe — respondi com uma voz pastosa e sonolenta de quem bebeu muito ou tomou alguma droga para tratar ansiedade ou, no meu caso, as duas coisas.
Chris chamou o garçom pelo nome, "Raimundo!". Um senhor baixinho, de rosto redondo, cabelos brancos cortados rentes e sotaque levemente nordestino, aproximou-se da mesa, e disse:
— Diga lá, patrão.
— Já sabe o que vai pedir? — perguntou Chris enquanto me encarava com seus olhos azuis deslumbrantes.
— Não, obrigado, tô sem fome — recusei a oferta, sorrindo com polidez num rosto cadavérico.
— Nada disso! Você tem que provar o tempero desse lugar! — insistiu Chris, virando o cardápio aberto na direção do garçom — Raimundo, eu vou querer uma porção de sardinhas em salmoura com geleia de carne de porco. E ele vai querer uma vaca, guarnecida com mostarda escura, no pão francês.
Ele era o típico babaca de classe média que escolhe as refeições para as outras pessoas. Ou talvez ele goste de manter tudo sob controle, cogitei em pensamento. Mas não tive muito tempo para julgar aqueles traços de personalidade que qualquer ser humano com alma reprovaria. Estava ocupado demais pensando em como pagaria o aluguel depois que o valor da conta fosse abatido do meu cartão.
Raimundo anotou o pedido mentalmente e se retirou depois de acenar com a cabeça. Por alguns segundos, um silêncio constrangedor, mediado por sorrisos sem dentes, nos envolveu.
— Legal aqui… — disse, tentando quebrar o gelo, ainda que estivesse idealizando um incêndio na cozinha e a chance de dar o fora. Tava na cara que era furada.
— Já conhecia? Tem música ao vivo!
— Não… quer dizer, já tinha passado na frente, mas nunca tinha entrado.
— Sabe como o pessoal chama aqui?
— Não é Baiuca's Bar? — questionei, já que era o que dizia o letreiro luminoso na entrada.
— Nã! Ninguém conhece por isso. O pessoal chama de "cu do padre".
— Cu do padre?
— É. Cu do padre. Não sei se você reparou, mas a gente tá na esquina da Padre de Carvalho, atrás da paróquia. Daí o nome. Cu do padre.
Que merda de história, pensei, mas na hora optei por rir para o deleite do idiota.
— Muita gente famosa vem aqui. Achei que você ia gostar.
— Não, não é isso. Eu gostei. É que costumo fazer as reuniões no escritório.
— Certo… E como vão os negócios?
Porra... Normalmente essa parte da conversa custa a chegar, mas o infeliz foi direto ao ponto. O que eu poderia dizer? 55 anos, divorciado três vezes, sem nenhum tostão no bolso. Eu já não era mais o Velocípede, o one-man show mais requisitado dos anos 90. Eu era a porra de um assessor de imprensa que não fechava um contrato há quase dois anos. A vida não era uma competição, mas eu estava perdendo. O desgraçado tentou me derrubar, mas permaneci firme:
— Vão bem — respondi com um sorriso forçado que deixaria até mesmo um cego incomodado — Agora tô numa fase de renovar o catálogo de artistas — o que não era de todo verdade, já que só é possível renovar coisas a partir do momento que você as têm.
— Eu estava assistindo uns vídeos seus outro dia, no Programa de Calouros, acho — comentou Chris, tentando se lembrar de algo que eu mesmo me esforçava para esquecer — Ou era naquele canal do pastor lá? Enfim… não lembro. O que estou tentando dizer é que você era bom, cara! — expressou, em tom magnânimo.
— É, faz tempo isso — retruquei, abaixando a cabeça em frente ao copo, tal qual um avestruz se refugiando no buraco.
— Eu adoro aquele número que você fazia imitando o carinha de Cantando na Chuva! Ninguém mais faz isso!
Chris se referiu ao trecho do meu primeiro espetáculo, onde girava em torno de um pedestal ao melhor estilo "Gene Kelly trepado no poste". No final, quando me esborrachava no chão, até que a plateia ria.
— Eu costumava fechar meus shows com ele. Era um bom número mesmo — concordei, ainda que meu rosto denunciasse um desconforto com os rumos daquela conversa.
Fiquei em silêncio por alguns segundos com um olhar distante. Os cientistas estudam incessantemente formas de como viajar no tempo, mas mal sabem eles que já existe uma fórmula bastante eficaz. Ir para o futuro, é simples: basta esperar e você estará lá. Já ir para o passado, é apenas uma questão de memória. O desafio mesmo é estar no presente. E eu devo ter ficado alguns bons minutos com cara de paisagem pensando nisso tudo porque o meu interlocutor se viu na obrigação de comentar:
— A gente pode mudar de assunto se você preferir…
— Não, não, tá tudo bem — interrompi, ainda que preferisse.
— Eu compreendo perfeitamente, não se preocupe. Quando um homem revira as memórias, é o coração que fica uma bagunça, não é mesmo?
Espera um pouco. Não basta ser inconveniente, o John Lennon da Vila Madalena ainda é cheio de aforismos retirados de um biscoito da sorte? Teria minha ex-esposa feito algum tipo de macumba em resposta ao atraso da pensão?
— Nada — disse, apaziguando a situação — É que fazia tempo que ninguém me reconhecia. Sabe como é, meu tempo passou.
— Você tá brincando? Você era autêntico. Isso não faz sentido nenhum.
Até que ele é um cara bacana, pensei, olhando com ternura para o sujeito que tentava apenas ser simpático, à medida que eu, um velho ranzinza, projetava em um desconhecido as frustrações de uma vida inteira.
— Eu me pergunto o que fez um cara como você decidir assessorar pessoas. Deveria ser o contrário!
Esse filho da puta não sabe a hora de parar?, pensei na sequência.
— Eu me divorciei três vezes. Pergunta pro meu contador que ele te explica — brinquei com um timing que deixaria Groucho Marx orgulhoso.
Chris soltou imediatamente uma gargalhada que parecia o som de uma pessoa apertando uma cabra.
— Eu entendo. Às vezes é impossível não se vender. A gente precisa ser profissional, afinal de contas.
Aí, pensei. Essa doeu.
— É, mas eu não me vendi — rebati, completamente desconcertado — Só remanejei minha carreira.
— A gente pode chamar assim se você preferir — disse Chris, em tom de consolo — Mas não me entenda mal. Não há problema algum em querer ganhar uns trocados. É preciso sobreviver, afinal.
Se o primeiro comentário doeu, o segundo me paralisou. Tentei pensar novamente em uma piada, que considero o melhor jeito de encerrar uma discussão, mas veio apenas silêncio e uma sensação de vazio. Para completar o meu purgatório particular, um homem, alto, carregando uma guitarra, de camiseta preta e chapéu fedora, subiu num palco (que só notei naquele instante) e cumprimentou os presentes.
— O que eu te falei? Música ao vivo! — disse Chris empolgado, esquecendo completamente que atropelou minha alma há meio segundo.
— Mas você ainda não me disse o que faz — questionei, observando o músico puxar uma base de blues country.
— Bom… — disse Chris voltando o olhar na minha direção — Digamos que eu também sou um one-man show, assim como você foi um dia.
— Sério? — perguntei sem tentar esconder a minha surpresa — Que tipo de número você faz?
— Sabe como é… o de sempre. Mágica, crown work; sou muito bom com platéias.
Pronto. Entendi tudo. É mais um novato metido a besta, considerei.
— Escuta, antes de mais nada, eu não sei se te falei pelo telefone, mas só trabalho com artistas experientes. É um jeito de compensar os riscos, entende?
— Não se preocupe quanto a isso. Eu tenho um fandom inteiro que me segue — disse Chris com a tranquilidade de quem conduz uma cirurgia.
— Engraçado… eu nunca ouvi falar de você — rebati, tentando não parecer indelicado, embora minha intenção fosse mesmo lembrá-lo de que ele não era ninguém.
— Talvez você me conheça pelo meu nome artístico.
Não é que o novato se acha mesmo? Claro. Nome artístico. Como não pensei nisso?, reavaliei.
— E qual seria?
O homem fez uma estranha pausa, riu com um riso contido, olhou para os lados e disse em um tom de voz mais baixo:
— Jesus.
Eu o encarei por alguns segundos ainda em dúvida se tinha ouvido mesmo o que tinha ouvido.
— Jesus? — repeti, pra ter certeza.
— É um dos meus muitos nomes, na verdade. Tem quem me chame de Emanuel, Jeová, Deus, Cristo… eu prefiro Chris. Vai beber? — perguntou, apontando para o copo com água ainda pela metade.
— Ah, não. Pode pegar... — respondi confuso, enquanto observava Chris puxar o copo com um restinho de água para junto do corpo. Que porra tá acontecendo aqui?
— Espera um segundo. Você é tipo um sósia? Faz cosplay? Não entendi direito.
Um sorriso sarcástico se espalhou pelo rosto de Chris e ele me corrigiu antes de dar um gole:
— Não, não… embora tenha trabalhado com isso um tempo depois que retornei.
Franzi as sobrancelhas e joguei a cabeça para o lado, como quem diz "voltou de onde caralho?!". Ao notar a minha expressão desconcertada, Chris completou parando o copo na altura da boca:
— Do reino dos céus.
Respirei fundo e assumi que era uma pegadinha feita por um Andy Kaufman de quinta. De qualquer forma, era exatamente a deixa que eu precisava para dar no pé.
— Escuta, eu não sei o que você ouviu sobre mim, mas não é esse tipo de trabalho, ou seja lá o que você faz, que costumo assessorar — disse levantando da cadeira cheio de marra.
— Como assim? Você já vai?
— Eu tenho outro compromisso agendado — Não tinha — Agradeço pelo seu tempo. Podemos manter contato, se você preferir — finalizei, estendendo a mão para que o lunático pudesse se despedir de forma apropriada.
Chris não disse nada durante um tempo. Então, com uma expressão impossível de se decifrar, deixou escapar:
— Ok. Mas você não vai nem beber seu vinho? — respondeu, dizendo a última palavra com ênfase, de forma deliberadamente lenta.
— Já bebi o suficien… — respondi interrompendo a sentença, entendendo a sugestão — Espera. Que vinho?
Foi aí que percebi que o copo com água agora era roxo feito um cadáver boiando no cais do porto. Chris me analisava com os olhos e um sorriso cínico.
— É melhor você correr ou vai se atrasar.
Fiquei em silêncio por alguns segundos como se tivesse esquecido meu idioma, e disse:
— Eu acho que ainda tenho tempo para outro drink.
CONTINUA…
Excelente texto. Só não recomendo para pessoas ansiosas kkkkk.