Dizem por aí que poucas pessoas possuem alguma habilidade artística para a qual foram designadas. A arte vive sob esse mito segundo o qual isto não é bem um trabalho, é um talento com que alguns foram abençoados. Acho que mais raro ainda são os que possuem a insanidade necessária para abraçarem essa experiência.
Charles Manson antes de ser um líder de culto tentou ser músico. Pois é, até mesmo o Charles Manson percebeu que é preciso ser louco para seguir com esse plano de carreira.
Me espanta como algumas pessoas são realmente atraídas pelo “estilo de vida” que esse mundo particular pode oferecer. E, veja bem, por “estilo de vida”, me refiro a refeições em horários desajustados, crises de ansiedade por não saber como será seu próximo ano e noites mal dormidas pensando quanto tempo ainda lhe resta para realizar os projetos na gaveta. É um caminho sem volta e que diariamente me gera inquietações existenciais profundas. Há sempre a questão financeira também. Me irrita sempre que vejo pessoas nas calçadas com seus instrumentos sendo chamadas de “artistas”. Desculpa, mas essas pessoas não são artistas de verdade. Sim, eles são talentosos, mas posso ver pelos chapéus no chão que eles estão ganhando algum dinheiro. Tem algo errado aqui.
O fato é: se você busca tranquilidade financeira e reconhecimento profissional, eu consigo pensar em 512 profissões diferentes que podem te proporcionar isso rapidamente. A vida artística é pouco interessante se olhada de perto e nunca me pareceu atrativa, tal qual a vida de modo de geral, mas essa segunda não foi uma escolha minha e deixo esse assunto para outro dia.
Porém, não quero de forma alguma com isso desencorajar o leitor que está buscando um ofício no ramo das artes. Isso é apenas um lembrete. Uma aviso em uma cerca elétrica. Eu não segui o conselho porque desde muito moço fui atraído por uma coisa chamada comédia. E pulei a cerca. A única coisa que me interessava na infância eram piadas. Quando decidi abandonar a carreira de publicitário, decisão que a minha banca de TCC julgou muito bem acertada, eu sabia os riscos que estava correndo. Aquele tipo de loucura que apenas uma lobotomia pode explicar. É tipo aquela frase do Sam Levenson: “Talvez eu não saiba o que você fez para merecer isso, mas você sabe”.
A verdade é que sempre gostei mais de palavras do que de pessoas. Quando se trata da vida, eu não estou particularmente interessado nela. Nada contra humanos — tenho até amigos que são —, é que a minha ideia de diversão normalmente não coincide com as noções populares sobre o assunto. Mas também nunca gostei da escrita como profissão. Na verdade, nunca conheci um bom escritor que gostasse de escrever. Quem gosta de escrever, provavelmente deve escrever muito mal, afinal, esse é um ofício como qualquer outro e deveria ser tratado com igual descontentamento.
Claro, quando criança, eu adorava escrever o tempo todo. Lembro-me de ganhar um concurso promovido pelo jornal Correio Braziliense de Melhor Redação quando tinha dez anos. O tema que escolhi foi o 11 de Setembro. Sim, eu era uma criança estranha.
Mas no segundo em que consegui meu primeiro trabalho como roteirista, dez anos mais tarde, passei a odiar palavras. Não sei exatamente o que aconteceu nesse meio tempo. Arrisco dizer que tem alguma coisa a ver com a quantidade de boletos que atravessam o vão da minha porta todos os meses e um desejo subjacente de não fazer nada.
No meu caso especificamente, ainda existe um agravante. Eu escrevo comédia. Eu preciso ser engraçado quando escrevo. É o que as pessoas esperam dos humoristas. Acredito que isso acontece por conta de uma noção equivocada que circunda o assunto. Pensei nisso dia desses, depois de assistir o novo especial do Jerrod Carmichael, Rothaniel.
Disponível na HBO Max, o show apresenta, entre muitas coisas, um comediante saindo do armário pela primeira vez na frente de uma plateia ao vivo. É um registro corajoso que simboliza o uso do palco como um espaço de cura para feridas de uma vida inteira. Real shit.
A honestidade na comédia geralmente é associada ao modo como um comediante é verdadeiro em suas observações. Mas não se trata apenas disso. Refere-se sobretudo às experiências humanas profundamente verdadeiras. Sim, pode ser interessante quando Jerry Seinfeld fala uma verdade sobre viajar de avião, mas honestidade não é apenas ser fiel ao contexto à sua volta. É principalmente ser fiel a si mesmo.
Carmichael é um desses escritores que estão cada vez mais forçando os limites do que significa algo ser uma comédia no sentido mais básico. No caso, a comédia aqui tem um desenvolvimento dramático. Há piadas, mas também existe uma preocupação com o tom, o impacto emocional, a narrativa, o discurso e a forma. Ser engraçado não é a única obrigação que ele se impõe.
E há discussões sobre isso.
Os gregos consideravam comédias as histórias com “finais felizes” — independente dos eventos relatados. Mais tarde, na década de 20, alguém usou a expressão punchline, “um soco por linha”, para elogiar uma peça de teatro em cartaz em Londres. A partir daí, o jornal The New Yorker passou a usar a expressão para classificar todas as peças que tinham mais piadas do que as outras. Essas eram as “verdadeiras comédias”.
Então chegamos aqui. Perceba que o número de piadas nunca teve nada a ver com o significado mais profundo de comédia. Era sobre vender “um produto”. As claques nas sitcoms existem por uma razão, afinal.
O Carmichael, ao meu ver, é o resultado de uma transição natural. A partir dos anos 2000, começaram a surgir novas peças humorísticas que estruturalmente são comédias — ainda que desenvolvidas de uma maneira pouco tradicional. Atlanta, BoJack, Curb Your Enthusiasm, Barry, os especiais do Bo Burnham, Tim and Eric, The Eric Andre Show são exemplos de obras que não aceitam o pacote formal do que significa algo ser uma comédia. Curb Your Enthusiasm talvez seja o melhor exemplo. Tem todos os elementos de uma sitcom, mas é desenvolvida de um jeito fora do comum. Piadas espaçadas, sem claques, o uso da câmera em um estilo documental e muitos momentos que trocam risadas baratas por alguma construção dramática. Steve Martin refletiu muito bem sobre isso em seu livro de memórias, Born Standing Up, quando disse:
“E se não houvesse punchlines? E se não houvesse indicadores [de quando rir]? E se eu criasse tensão e nunca a libertasse? O que é que o público faria com toda essa tensão? Teoricamente, teria de sair por algum lugar. Mas se eu continuasse a negar-lhes a formalidade de uma punchline, o público escolheria o seu próprio lugar para rir, essencialmente por desespero”.
Colocar a comédia (ou qualquer linguagem) em uma caixinha de duas ou três coisas é sempre um problema. Provavelmente eu não faria o que faço hoje se dois senhores, Mort Sahl e Lenny Bruce, não tivessem falado: “Hei! E se eu fizer esse tal de stand-up comedy de outro jeito?”. Porque a comédia é uma forma de arte em constante transição, portanto, é natural que ela passe por lugares que normalmente não é bem-vinda. Isso tudo é para falar: veja Rothaniel do Carmichael. Esse menino é o futuro.
Às vezes um escritor precisa consumir coisas que não estão necessariamente ligadas a profissão dele. De repente aquilo pode fornecer uma resposta para o tema em questão. Pode não ser uma resposta completa, mas pode alimentar algum esquema mental, um modo de raciocinar próprio, e, de repente, faz abrir caminhos.
O que mais tenho escutado nos últimos dias é o novo disco do Pusha T, It's Almost Dry, produzido por Pharrell Williams e Kanye West.
O rap costuma ser um estilo musical bastante direto e sem muitas sutilezas quando o assunto é discurso. E é bom que seja assim. Na maioria das vezes, é preciso atacar os problemas na carne viva.
Mas também existem rappers como o Pusha T que transformam toda uma experiência de vida em metáforas que qualquer um pode se relacionar. O romancista Mário de Carvalho costumava falar algo sobre isso, que nenhum escritor precisa ter ido à guerra para saber o que é medo, por exemplo. É por aí. Não tive a vivência do Pusha T, mas consigo entender o que ele quer dizer com:
“The ones you trust don't change like them chains you tuck”.
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