Gosto de restrições quando escrevo. Eu não entendo as pessoas que querem mais liberdade. O que é assustador em escrever é precisamente a liberdade. Alguma vez na faculdade, durante uma lição de casa, o professor te disse: “Você pode escrever sobre o que você quiser”. Não é assustador? Isso significa que você pode escrever sobre todos os assuntos do mundo, o que, por sua vez, significa que você vai ter mais trabalho - algo que tendo a evitar assiduamente. Isso não quer dizer que odeio escrever e nem que a minha liberdade deve ser podada. Eu só odeio trabalhar mesmo. E qualquer tentativa de me provar o contrário constitui um comportamento inaceitável.
O que quero dizer realmente é que, sim, você pode ter talento, mas escrever ainda é um ofício. Envolve processos mentais, assimilação, pesquisa, leituras… quem tem vontade de fazer tudo isso? Eu não. Por isso gosto quando alguém me diz sobre o que devo escrever. Isso torna as coisas mais fáceis. Gosto quando alguém me diz: “Daniel. Escreva sobre rituais de asfixia autoerótica”. E eu sempre respondo: “Mãe, para de me pedir essas coisas!”.
É claro que muitas das coisas que digo (e acredito) são contrárias ao que as outras pessoas pensam, mas não é culpa delas estarem erradas.
De todo modo, gosto de prestar atenção no que os outros consideram. Alguns, por exemplo, preferem uma concepção de liberdade absoluta que, ao contrário do que parece, não garante direito de liberdade, mas faz valer um privilégio. Explico.
Nas últimas semanas, pude reparar que grupos de direita tentaram emplacar a narrativa de que a lei 14.532 de 11 de janeiro de 2023 serve para prender humoristas por “piada ofensiva”.
Se você foi alfabetizado, fica claro no texto que essa lei tipifica injúria racial como racismo. Ninguém falou em proibir o humor ou contar piada. É só racismo mesmo.
“Mas fala sobre ambientes artísticos”, sim, porque como mostrou o comediante Michael Richards (o Kramer, de Seinfeld), as possibilidades de ser racista são bastante infinitas.
Acho sempre muito curioso como a esquerda é constantemente acusada de promover agenda ideológica em forma de piada, mas a direita jamais promove crimes em forma de piada. Nesse caso… não. É o politicamente correto agindo e eles precisam de um abraço. Aparentemente só as piadas dos seus adversários políticos são veículos para expressar ideias consideradas por eles “ruins”. Interessante.
Particularmente acho que nenhuma das duas “militâncias” tem o direito de serem guardiãs do bom gosto. Mas todo esse bafafá com a tal lei 14.532 mostra que não é exatamente sobre liberdade que se trata essa discussão.
Uma coisa que escuto muito nesse eterno debate sobre liberdade de expressão é que o politicamente correto dificulta o trabalho do humorista. Eu acho que é exatamente o contrário. Nada dá mais poder ao humorista do que gente indignada. Se você ficou puto, você perdeu. Em outras palavras, pro humorista (principalmente os que são ruins) nunca foi tão fácil ganhar atenção. Tudo que você precisa fazer é ser “polemicão” que vai ter um exército de indignado de plantão pra te dar ibope, especialmente agora que eles saíram das portas dos quartéis. Antigamente, no entanto, esse status do humorista era atingido escrevendo piadas, mas vivemos em tempos esquisitos, de fato.
Outra coisa que penso bastante: os limites do humor são diferentes dos limites da liberdade de expressão? Eu concordo que os limites do humor são mais “elásticos”. O discurso humorístico tem características específicas que o distinguem de outros tipos de discurso. Coisas como ironia, o exagero… mas enquanto veículo de conceitos, concepções, representações, imagens, sentidos, substâncias, qual é exatamente a diferença entre uma frase e uma piada?
Eu não sei nada de direito criminal, o que é evidente (como não sei nada de vários outros assuntos e direito é só mais um deles), mas, gostem ou não, o discurso humorístico ainda é um discurso (ainda que humorístico).
Por isso nunca conheci alguém que achava que se pode dizer tudo. Todo mundo que conheço reconhece que, sim, existem limites que estão na lei.
Quando uma difamação causa um dano imensurável a uma determinada pessoa, por exemplo, é direito da pessoa recorrer à lei. Existe alguém que discorda disso? Mesmo o tribunal americano que costuma ser usado como exemplo de “liberdade absoluta” impõe regras à liberdade de expressão. Se alguém incita a outra a violência, por exemplo, sempre é considerado a intenção, a probabilidade e a iminência dela acontecer. Do contrário, como as pessoas podem se defender? Como uma pessoa vai se defender de calúnias, por exemplo? Saindo no soco? Não é uma ideia ruim, mas sabe qual é a diferença entre uma pessoa normal e selvagens que entram em um jornal e metralham jornalistas por causa de algo que eles não gostaram no jornal? Pessoas normais vão aos tribunais.
Isso quer dizer que todo o discurso está sujeito a lei? Não acho. Que toda piada ofensiva é um crime? Discordo. Ou mesmo que os juízes brasileiros andam julgando bem? De maneira nenhuma. Mas percebo que existe uma histeria - e não dá pra chamar de outra coisa - em volta dessa ideia de que a liberdade de expressão está em perigo, o que não corresponde necessariamente com a verdade. Existem certas distinções que precisam ser feitas.
Uma distinção que precisa ser feita é entre censura e boicote. A cena é simples: um humorista faz uma piada, a internet problematiza a piada e, de repente, o humorista se atira ao chão berrando "estão a me censurar aí aí aí”. Quantas vezes vocês já viram isso? Ora, se alguém não gosta de uma piada, ela tem o direito de usar todos os meios democráticos possíveis para boicotá-la. É basicamente o que eu faço com todos os filmes do Christopher Nolan. Não é difícil, garanto. E isso também é liberdade. A lei interviu? Não. Houve uma intervenção de juízes? Não. Houve alguma interferência do Estado? Muito menos. Boicote não é censura. Da mesma forma que não é censura alguém expressar uma opinião sobre determinada coisa. E vou além: isso é a vida. Se fazer certas piadas significa perder oportunidades, bem-vindo ao clube, camarada.
Em 2014, quando fiz piadas com o Aécio Neves, eu tive dois shows solos cancelados por causa disso, mas não fui choramingar nas redes sociais. E olha que não sou um comediante milionário. Eu dependia desses shows para sobreviver, mas, tudo bem, acontece.
As pessoas querem exercer a liberdade de expressão sem os custos de qualquer dinâmica democrática e o nome disso é privilégio.
Pessoas de direita costumam dizer que não se começa uma frase com “liberdade de expressão, mas”, e, em seguida, definem o “mas”. O que elas não admitem é que existe sim um “mas”... definido por elas.
No caso dos humoristas, ainda existe a questão da vaidade, que vai de encontro a tudo que um humorista é. As redes sociais colocaram os humoristas em uma situação que nunca haviam visto. A reação do público é muito maior, não é só os que querem ver ele. Então, cria-se um ambiente onde a maior parte dos humoristas, pessoas que se habituaram a serem populares, acabam tendo uma enorme dificuldade em viver com a liberdade de expressão dos outros, que inclui as opiniões (mesmo erradas) dos outros, que podem (e geralmente são) tão estúpidas quanto às bobagens que os humoristas falam.
Mas há exceções.
Deixa eu te fazer uma pergunta: como exatamente você organiza uma cerimônia de premiação que não foi televisionada no ano passado depois que o racismo sistêmico de seu corpo votante foi exposto publicamente?
Em 2021, uma reportagem do LA Times revelou que a HFPA (Hollywood Foreign Press Association), um grupo de cerca de 90 jornalistas internacionais que premia o Globo de Ouro desde 1944 e exerce grande influência, não possuía membros negros.
Portanto, como você aborda isso?
Um humorista desavisado faria algumas piadas sobre o caso e depois se encaixaria nos moldes dos apresentadores anteriores - lançando piadas ácidas sobre os membros da platéia, em meio a uma série de comentários sobre as obras que seriam premiadas na noite. Não foi o caso de Jerrod Carmichael.
Sentando na beira do palco, Carmichael disse: “Eu vou te explicar o motivo de estar aqui. Eu estou aqui porque sou negro. Eu vou te contar o que está acontecendo. Este show, o Globo de Ouro, não foi ao ar no ano passado porque a Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood – que não direi que era uma organização racista, mas eles não tinham um único membro negro até a morte de George Floyd… faça com essa informação o que você quiser”.
E, a partir daí, Carmichael não poupou esforços para fazer um monólogo sobre o absurdo e a hipocrisia de Hollywood. Tudo com um desconforto brutalmente honesto. Foi um monólogo bem diferente do que estamos acostumados a ver em premiações. Não foi uma recapitulação otimista do ano na TV e no cinema. Ele não atacou levemente a desigualdade na indústria e depois seguiu em frente. Ele foi específico.
“Em um minuto você está fazendo chá na sua casa, no outro, você é convidado para ser o rosto negro de uma organização branca em apuros"
Carmichael admitiu ter aceitado o trabalho pelo dinheiro e contou uma história muito interessante com sua “homegirl” Avery, a pessoa que ele liga quando precisa de conselhos: “Eu contei a ela sobre como [o programa do ano passado] não foi ao ar por causa da coisa de não-negros. E ela disse, ‘Bem, quanto eles estão pagando para você?’. E eu disse: ‘$ 500 mil dólares’. E ela disse: ‘Rapaz… se você não colocar um terno bonito e pegar o dinheiro dos brancos!’”.
A admissão de Carmichael de que ele aceitou o emprego pelo dinheiro é engraçada, mas também fala da experiência de tantos negros naquela sala. Eles tiveram que vestir seus “ternos bonitos” e lidar com uma instituição que historicamente os excluíram.
No entanto, muitas pessoas na internet não gostaram e boicotaram o monólogo. Um direito delas, evidentemente. Eles queriam uma pessoa negra simbólica passando um pano em uma organização que contribuiu para a desigualdade destrutiva em Hollywood por décadas e, claro, fazendo umas piadinhas incorretas à la Ricky Gervais.
Mas em uma indústria sustentada apenas pela fachada da mudança e pela promessa superficial de representatividade, o que é mais "incorreto" e libertário do que alguém dizendo a verdade? São tempos esquisitos.
Para ouvir depois de ler:
Depois de ler isso, me senti menos "estranho" no meio da comédia.
(Hoje estava refletindo justamente sobre essa música do PH)