Dia desses descobri pelo Twitter que a influencer Jout Jout, após uma pausa de dois anos do YouTube, anunciou o fim de seu canal. Do lado de cá, eu senti apenas inveja. Não tem um dia sequer que não acordo pensando em excluir tudo. Twitter, Instagram, YouTube e qualquer vestígio meu online. E eu sei o que você está pensando, mas não. Isso não é uma romantização de algo que, provavelmente, eu acabaria odiando. É uma meta de vida mesmo. Alguns buscam a tão sonhada casa própria, eu só quero o privilégio de poder me comunicar e trabalhar por e-mail. Meu sonho é ser uma imobiliária praticamente.
Porque existem poucas coisas que tenho como certo nessa existência vazia e desprovida de significado. E elas são:
1) Poderoso Chefão 3 é ruim mesmo.
2) A internet no fundo, no fundo, foi uma experiência à qual fomos condicionados.
A internet é aquela cena de Laranja Mecânica que o cara é amarrado na cadeira com os olhos arregalados por um equipamento de metal. Eu sei que à princípio soa um tanto quanto exagerado dizer isso porque, diferente do filme do Kubrick, estamos assistindo gifs das nossas séries favoritas e memes zoando a voz do Sergio Moro, o que, admito, é bastante divertido.
Mas eu sou um sujeito que cresceu no começo dos anos 2000 e por isso tenho um certo lugar de fala nesse assunto. Quando adolescente, eu tinha um Nokia 1220 e uma dúzia de mensagens de texto gratuitas por semana. Eu não podia virar noite batendo boca com um cirista tentando explicar para ele que, no atual momento, o importante é derrubar um presidente que matou milhares de pessoas em uma pandemia. Eu provavelmente ia precisar dessas mensagens caso fosse sequestrado por gangue de skinheads - o que na Brasília dos anos 2000 era algo totalmente possível de acontecer.
Hoje em dia, contudo, qualquer pessoa consegue enviar quantas mensagens quiser a qualquer momento. Nada é perecível e estamos constantemente disponíveis. Mas antigamente as pessoas escreviam cartas. Se você brigasse com alguém na sexta, você tinha que esperar até a segunda-feira da próxima semana para enviar o seu desabafo via Sedex. Você tinha que acompanhar a sua raiva pelo código de rastreio. Mó fita.
E ficamos dependentes dessas coisas. Meu Twitter é como a minha geladeira: mesmo sabendo que não tem nada de novo lá, eu faço questão de abri-lo a cada meia hora.
É aquilo. O corpo humano consegue sobreviver três semanas sem alimento, três dias sem água, mas somente três horas sem wi-fi. Quem nunca contou para um amigo que terminou um relacionamento e a pessoa disse no alto de sua sabedoria:
- Nossa, mas você não parece triste no Instagram.
Sim, porque as pessoas mentem lá. Se você termina um relacionamento, você não posta uma foto sua comendo sorvete às 3 da matina assistindo pela décima vez Orgulho e Preconceito (de 2005, óbvio). Claro que não. O que você faz é postar uma foto sua de uma viagem feita há 3 anos para a Argentina, onde você abraçou um leão totalmente drogado. Você garante que a única pessoa triste na sua grade de fotos seja esse leão.
E aí, em troca desse acesso à informação, da comunicação instantânea e da venda de nós mesmos como mercadorias, ganhamos problemas de ansiedade e validação pessoal. Que belo acordo. Eu ainda fico espantado como na internet a gente naturaliza umas coisas que, no meu tempo, todo mundo abominava. No meu tempo, a gente achava que vaidade era uma coisa meio patética. Hoje, você invade o espaço do outro através de postagens para falar de você. Na internet, todo mundo é uma testemunha de Jeová si mesmo. “Oi, tudo bem? Você tem um minutinho para falar de mim?”.
Mas aí que mora a ilusão. Na internet, eu sei das opiniões, dos gostos, dos desejos, dos lugares e dos amigos de fulano, mas não sei de fulano. Estamos imersos no mar dos algoritmos e gostamos das águas. Há tanto em tudo e, ao mesmo tempo, não há nada, o que é meio assustador. E é precisamente esse horror, na minha leitura, que Jordan Peele tentou explorar em seu novo filme Nope.
Na história, Daniel Kaluuya e Keke Palmer interpretam respectivamente OJ Haywood e sua irmã Emerald. Os dois são os descendentes do jóquei negro imortalizado no experimento “O Cavalo em Movimento” de Eadweard Muybridge, que em 1878 fotografou com sucesso o galope de um cavalo quadro a quadro, usando uma série de 24 câmeras. O experimento foi considerado o primeiro filme feito e o jóquei (ao contrário do cavalo) foi esquecido pela história. Além de irmãos, OJ e Emerald são responsáveis por cuidar de um rancho, onde treinam cavalos para aparições em filmes. Mas depois da morte do patriarca da família, o negócio anda mal das pernas, e o vizinho deles, Ricky Park, interpretado por Steven Yeun, quer comprar a propriedade e integrá-la a um parque temático da região. Tudo isso muda, no entanto, quando um disco voador começa a sobrevoar o rancho e os irmãos enxergam uma oportunidade de obter sucesso e dinheiro filmando o objeto. Eu sei. Muita coisa pra processar e eu não contei nem os 20 primeiros minutos do filme.
Mas aqui está o que me chamou atenção nessa trama doida: é uma história de OVNIs na qual os protagonistas não parecem interessados em matar alienígenas, mas fazer um registro da “coisa” para benefício próprio. Nesse sentido, o filme reflete muito bem a nossa relação com as novas mídias. A vida hoje é menos sobre o que acontece e mais sobre quais vantagens podemos tirar dessas experiências no âmbito digital.
E Jordan Peele não tece essa crítica de um jeito infantil. Há sempre um ponto de vista forte, social, sobre essa realidade pra lá de esquisita que a gente se meteu. Esses irmãos representam o legado de um homem que foi apagado da história. O registro não é apenas uma forma de salvar o rancho, ganhar dinheiro e ficar famoso. É uma espécie de reparação. Diferente do jóquei de Eadweard Muybridge, é um jeito desses irmãos alcançarem a imortalidade ou uma matéria na Oprah, o que vier primeiro.
E essa ideia de tentar “corrigir” o passado retorna em outra subtrama da história, quando Park, que foi um ex-ator mirim em uma sitcom dos anos 90, rememora as filmagens do último episódio da série. Na ocasião, um chimpanzé passou por uma ataque de raiva violenta e acabou matando, mutilando e desfigurando atores no set. Park foi o único poupado da fúria do bicho. E, mais tarde, já adulto, a forma que Park tenta lidar com esse trauma é lucrando com a curiosidade mórbida das pessoas sobre o evento. O que me leva novamente ao nosso relacionamento disfuncional com as mídias digitais, onde tudo que deveria causar repulsa acaba por ser comercializado. Um verdadeiro show de horrores bastante rentável, diga-se de passagem.
Quando aquele influencer nazi disse no YouTube, por exemplo, que o Brasil deveria “legalizar um partido nazista”, o que aconteceu em seguida não foi uma preocupação com o uso dessas ferramentas para a propagação de discursos que matam, mas um trâmite comercial. Em pouco tempo, o influencer conseguiu monetizar esse evento ao seu favor e fazer dinheiro em outra plataforma. E a verdade é que todo mundo tem um dedo de culpa nisso. De um lado, temos pessoas relativizando o acontecimento, do outro, pessoas fazendo uma verdadeira campanha publicitária grátis ao dito cujo em troca de um tapinha nas costas. É meio o que aconteceu nas eleições americanas. Na época, diante da subida de Trump nas pesquisas, o comediante Jon Stewart fez uma observação muito boa: “Talvez ele esteja crescendo porque está em todos os lugares”. E é exatamente isso o que acontece nas novas mídias, só que multiplicado por 1000.
O título horrível que Nope ganhou no Brasil, Não, não olhe!, é um lembrete desse ciclo vicioso: os personagens descobrem em um certo ponto da história que não devem encarar o objeto diretamente, mas ao mesmo tempo são incapazes de desviar o olhar mesmo sabendo dos perigos envolvidos nessa ação. É como um acidente de carro ou, como bem me lembro, o 11 de setembro, que reprisou tantas vezes na televisão que perdeu qualquer significado literal. Não é à toa que nesse filme ninguém parece ter tempo para lamentar os óbitos. Há prioridades.
Portanto, se tiver a oportunidade, assista Nope. É um espetáculo visual cheio de conteúdo que reflete sobre a espetacularização do conteúdo. Isso tudo vai do quanto você está disposto a se envolver com essa maluquice, mas acredito que mesmo quem busca por uma experiência pipoca de qualidade, acabará por sair satisfeito. Jordan Peele manja. E, claro, sem moralismos toscos. As novas mídias têm seus custos morais, bem como seus prazeres. É uma realidade caótica, difusa, que banaliza o sofrimento, mas também é o único lugar onde você pode ver um gato tocando piano.
É o preço que se paga.
Pra ouvir depois ler (ative as legendas para ler a letra):
Eu sempre me pego pensando nessa insanidade que virou a internet e o mainstream. A minha adolescência começou junto com a internet discada. Ainda lembro do prazer que era garimpar fóruns sobre temas avulsos, todas as sextas-feiras após a meia-noite. Antes, você primeiro precisava pensar no que você queria, pra depois ligar o computador, tomar um banho, escovar os dentes, esperar o windows terminar de inicializar pra, aí sim, começar uma jornada por terras férteis e desconhecidas. Hoje, o mainstream e as redes sociais praticamente ditam o que você tem que consumir. É engraçado que, antes mesmo da internet, o Planet Hemp já fala sobre Ditadura Cultural, no album "os cães ladram mas a caravana não para". Ainda não assisti Nope, mas já tá na minha programação de sábado a noite.
pô, dou mó risada, valeu, Duncan!