Depois do primeiro turno das eleições pude constatar que a esquerda brasileira andou praticando um certo pessimismo exacerbado ao longo da semana. Se eles tivessem me consultado antes teriam poupado muito trabalho. Sou de longe a pessoa mais pessimista que conheço. Meu pessimismo tem subsolo. Antes que algo ruim aconteça, eu já fantasiei uns 12 cenários potencialmente piores. Considero que a melhor forma de lidar com a casualidade da experiência humana é torcer para ela dar errado. Melhor esperar nada e garantir qualquer coisa do que esperar tudo e se ver afundado no desespero toda vez que conseguir menos. Quando não se tem nada, o pessimismo é a melhor rota de fuga, especialmente se você não tem dinheiro para fugir para outros lugares.
Além do mais, a realidade é raramente otimista. Ao longo dos meus 30 anos de idade, consigo listar de quinze a vinte momentos realmente positivos em toda minha vida. O resto, ou eu não me lembro ou prefiro esquecer. Não tem erro. O pessimismo é a estratégia perfeita contra a realidade (e a mais ajuizada também). Honestamente, pense comigo: em um mundo de infinitas enfermidades, por que alguma coisa boa aconteceria com você? Se alguma coisa boa acontece comigo, eu faço um sinal da cruz e entro em contato com a minha benzedeira o mais rápido possível.
Quem pensa positivo o tempo inteiro não viveu a vida o suficiente para ser cínico.
Mas, de fato, vivemos em tempos tão obscuros, com tantas coisas genuinamente erradas – ameaças à democracia, pandemia, tiktokers –, que ser otimista é um privilégio que apenas uma minoria pode se dar ao luxo. Portanto, é natural que depois de uma eleição que elegeu Damares & Pazuellos a esquerda tenha se acorrentado em uma desilusão insuperável. Mas permita-me fazer uma ponderação:
O resultado dessas eleições não é muito diferente dos resultados das outras eleições.
O otimismo é, e sempre foi, um terreno mal frequentado por quem busca um bem estar social para o seu povo. Logo, é óbvio que a esquerda deve se sentir pessimista. Pelos meus cálculos, a esquerda brasileira anda pessimista desde 1985.
E, convenhamos, seria muita sorte (ou, no mínimo, estranho) passarmos por tudo que passamos para tudo acabar simplesmente “bem”. Imagine isso: estamos realmente discutindo quem deveríamos escolher entre um político que faz apologia à tortura, responsável por metade dos 700 mil óbitos na pandemia, e outro que tirou o país do mapa da fome. Em outras palavras, já passou da hora do Brasil colocar na moda, ou tornar obrigatória, o uso da camisa de força.
No entanto, também há muito o que se comemorar.
A esquerda venceu o primeiro turno com 20 pontos a mais que em 2018. Federações progressistas aumentaram suas bancadas. Um candidato de esquerda ao governo de São Paulo chegou ao 2° turno após 20 anos. O MBL fracassou e o MST elegeu 3 vezes mais representantes. A próxima legislatura será formada por maioria feminina e representatividade de negros e negras, indígenas e a 1ª mulher trans eleita para a história do Congresso.
E não é o senhor Luiz Inácio que precisa conseguir 8 milhões de votos até o final do mês e desvincular sua imagem da Maçonaria - uma preocupação recíproca, aliás, já que os maçons também precisam desvincular sua imagem do atual presidente o mais rápido possível.
Não me entenda mal. Ainda defendo o direito de ser pessimista. Pessoas que pensam no que pode dar errado, em vez do que pode dar certo, desempenham um importante papel cultural. São essas as pessoas que confrontam as questões complicadas. O que seriam os filósofos modernos se não idosos com bastante tempo livre para reclamar sobre uma ampla gama de assuntos? Freud e Nietzsche nunca foram pensadores. Eram tuiteiros com uma boa formação, mas sem acesso à internet.
E a cada dia essas pessoas se tornam mais raras. Não é à toa que volta e meia um senhor no tik tok vira um verdadeiro fenômeno falando obviedades que qualquer um com um coração amargo poderia chegar.
E por tudo isso queria te fazer um convite: assista Marte Um de Gabriel Martins.
Nenhuma obra de arte é criada no vácuo. Qualquer produção é feita dentro de um contexto histórico, político, social e econômico. Em outras palavras, qualquer obra de arte é um espelho da sociedade, que reflete em maior ou menor grau, na superfície ou no subtexto, as urgências da população.
E Marte Um não poderia ter chegado em um momento mais oportuno.
O filme conta a história da família Martins, que vive tranquilamente nas margens de uma grande cidade brasileira após a decepcionante posse de um presidente extremista de extrema-direita (sim, ele mesmo). Sendo uma família negra de classe média baixa, eles sentem a tensão de uma nova realidade que toma conta do país. Tércia, a mãe, reinterpreta seu mundo depois que um encontro inesperado a deixa se perguntando se ela é amaldiçoada. Seu marido, Wellington, coloca todas as suas esperanças na carreira futebolística de seu filho, Deivinho, que por pressão e querendo agradar o pai, segue as ambições dele, apesar de secretamente aspirar estudar astrofísica e colonizar Marte. Enquanto isso, a filha mais velha, Eunice, se apaixona por uma jovem de espírito livre e questiona se é hora de sair de casa. A partir daí, tudo começa a dar errado na vida dessas pessoas e é deliciosamente divertido.
Há filmes que impressionam, claro, se visitados antes dos dezoito. Mas, depois que entramos na vida adulta, deixamos de lado certas simplificações sobre o mundo. Tarantino passa a ocupar uma posição secundária em nosso HD externo e podemos ver certos filmes como eles merecem: como poesia, em um nível pessoal e íntimo, e nada mais. Contagem, a cidade onde se passa a história, me lembrou muito São Sebastião, distrito na periferia de Brasília onde cresci. É tudo muito familiar. É como se eu fosse próximo dos personagens e, de fato, após assistir o filme, pensei em telefonar para eles para saber como andam as coisas.
Mas a lição mais importante aqui é que a espiral de situações que os personagens são submetidos são um lembrete da principal causa de desilusão: a criação de expectativas. É um filme que, entre muitos assuntos, fala sobre o direito de ter um dia ruim e se reconstruir na manhã seguinte. Portanto, assista Marte Um assim que possível. Tenho certeza que, ao final, você terá o que precisa para se sentir pessimista sobre o pessimismo.
O pessimista nada mais é que uma pessoa emocionalmente precavida. Lembrei de uma frase da série Vikings, dita por Floki: "Espere sempre o pior das pessoas. Você se decepciona menos e se surpreende mais."
Muito inspirado dizer que o filme deveria ser visto "como poesia, em um nível pessoal e íntimo, e nada mais". Penso de forma semelhante e hoje vejo poesia até em filme de zumbís.
Agora, quanto ao pessimismo que você aborda, também o considero como uma necessidade pessoal e não como um aspecto negativo de qualquer personalidade. Óbvio, desde que essa personalidade tenha a paciência inabalável de analisar todas as camadas que as situações e problemas nos impõem.