Vamos colocar desse jeito: todas as histórias de amor são sobre morte.
Aquele célebre pensamento aristotélico, “de que o ser humano é o único animal que ri”, é totalmente verdadeiro, mas não apenas isso. O ser humano também é o único animal que “ama”. E, sim, eu sei que mesmo animais selvagens podem ser afetuosos uns com os outros, mas só o ser humano sistematiza o amor para uma finalidade que deseja alcançar. E também porque nunca vi um casal de carcarás jantando em um restaurante com estrelas Michelin.
Repare que coloquei aspas em “ama” porque o arranjo de experiências às quais nos referimos com a palavra amor varia bastante. Amar, inclusive, nem sempre é uma coisa boa. Assassinos em série, por exemplo, amam matar pessoas. É a coisa favorita deles. O amor é isso. Pode ir desde encontrar a companheira da sua vida até alguém que bota fogo na sua casa e mata a sua família com um cutelo de açougueiro.
O que eu sei sobre amor é o seguinte: é sobre morte.
Minhas pesquisas recentes constataram que esse fenômeno a que chamamos de vida continua a ser um mistério que não se revela. As religiões tentam todos os dias ganhar esse bingo existencial, mas de rabinos a padres ninguém completou essa cartela sobre o que diabos está do outro lado. O que também não é culpa deles, evidentemente. As possibilidades são muitas nesse sentido. Pode ser qualquer coisa. Pode ser o deus cristão, barbudo vestindo uma túnica branca, como também pode ser o deus das crenças indígenas do povo tagalo, ou até mesmo uma capivara dançando macarena - a melhor alternativa, sem sombra de dúvidas.
A pior alternativa seria voltarmos exatamente para o mesmo lugar do qual viemos. O nada. Por mais que não goste do que as religiões têm a me oferecer, prefiro elas ao nada. O nada carrega a certeza de que a vida não tem sentido. E, como bem sabemos, tal qual uma capivara dançando macarena, é uma possibilidade.
Logo, todo o ser humano, independente do credo, carrega o peso dessa inquietação: talvez isso aqui não tenha propósito mesmo. E, portanto, não é de se admirar que estratégias sejam criadas para lidar com essa terrível condição.
E aí - sem trocadilhos - o céu é o limite.
Você pode adotar um cachorro, rezar para uma entidade ou até mesmo tomar banho enrolado em um fio de cobre conectado à tomada. Existem muitos jeitos de suportar o fato da existência ser demasiada devastadora, assustadora e dura. E o amor é uma delas.
Já dizia o Tony Soprano: “A vida é uma série de distrações até o dia que você morre”. Se o medo da morte existe, é muito provável que o amor sirva para alguma coisa. E, veja bem, não estou dizendo que a vida só ganha sentido mediante ao amor. O que estou dizendo é que ele é uma ótima distração. Não responde às questões fundamentais para uma existência satisfatória, mas ajuda a diminuir o peso disso tudo, ainda que de forma temporária. É alguma coisa. No final, sabemos que ninguém escapa à morte, os que a temem e os que a satirizam. Cedo ou tarde a morte cruza o seu caminho e não adianta simular um ataque epilético ou vestir um disfarce do Groucho Marx com óculos e bigode. A morte vai te levar. Já dizia o Tony Soprano também: “Engraçado como a vida é. Vários caminhos diferentes, mas todos levam ao cemitério” - tudo bem que ele era o líder de uma gangue de mafiosos metidos em todo tipo de carnificina, mas não deixa de ser verdade.
A diferença, ao meu ver, é que a vida de uns e de outros pode ser bem diferente com (ou sem) amor. Pensei nisso depois de ver o novo filme do George Miller, Three Thousand Years of Longing (Era Uma Vez Um Gênio). A sinopse diz o seguinte:
O filme acompanha a Dra. Alithea Binnie, interpretada por Tilda Swinton, que encontra um “djinn”, vivido por Idris Elba, o que no ocidente, é comumente denominado como “Gênio”. A criatura lhe oferece três desejos em troca de sua liberdade, e isso apresenta dois problemas: primeiro, ela duvida que ele seja real, e segundo, por ser uma estudiosa de histórias e mitologia, ela conhece todas as histórias de advertência sobre desejos que deram errado. O djinn defende seu caso contando histórias fantásticas de seu passado e, eventualmente, ela é seduzida e faz um desejo que surpreende os dois, o que leva a consequências que nenhum dos dois esperava.
Isso mesmo. A mulher se apaixona pelo gênio. O que, convenhamos, é uma trama bastante previsível. Se um Idris Elba do tamanho de um ônibus fosse materializado no meu quarto, eu também faria o mesmo. É compreensível. Sobretudo porque, no início da história, sabemos que a doutora é uma mulher que se entregou completamente à solidão como um estilo de vida. E parece ligeiramente desconfortável com os rumos desta escolha.
Apesar de parecer um filme estrelado pelo Rob Schneider com o título “Meu Marido é Um Gênio”, Miller parte dessa premissa doida para criar um delicado ensaio sobre amor formado por um mosaico de folclore, fantasias, criaturas, tribos e cultura oriental. Tudo construído com muita calma e delicadeza. Cada uma das três melancólicas histórias contadas pelo gênio são sobre as consequências e vicissitudes do amor. E é aí que o filme encontra o seu brilho. Ao invés de apresentar uma versão açucarada da coisa toda, Miller exibe a verdadeira crosta de ambiguidade que envolve as relações amorosas e como o amor pode ser tanto sonho quanto pesadelo. E, de fato, muitas vezes, o filme oscila entre um romance e um conto de horror, exatamente como são as relações amorosas, que nunca dá pra saber exatamente quando um se transforma no outro. Mas a doutora está longe de entender isso. Após ouvir as histórias do gênio, Alithea tem apenas um desejo: “Eu preciso te amar. Eu desejo que você me ame de volta. Quero juntar nossas solidões”. E é uma morte terrível.
Tal condição imposta por ela cria encargos e tensões que nenhum dos dois poderia prever. Afinal, amar não é sobre esperar por coisas prontas e consumi-las igual um lanche do McDonald's. O nome disso é, ironicamente, desejo. Amar é sobre construir (no caso, uma experiência amorosa). E, nesse sentido, o amor se parece bastante com a morte. Os dois são eventos marcantes, indefinidos e imprevisíveis.
Os dois são reféns do destino.
Os dois têm uma natureza incerta.
E os dois concordam com a concepção do desaparecimento e a finitude das coisas.
O romancista Ivan Klíma foi mais além nessa ideia. Para ele, a chegada de um dos dois é sempre única e definitiva: não se repete, não permite recurso nem promete prorrogação. Ou seja, para Klíma, só se ama e morre uma única vez.
Eu não sei se concordo com ele. Eu já amei mais de uma vez nessa vida ou, quem sabe, foram só experiências de quase-morte.
Para ouvir depois de ler: