Era uma vez no agreste
Em um sertão fervilhante, um padre e uma cangaceira tramam um roubo que pode ser sua redenção ou perdição
Sobre o sertão impiedoso e abrasador do Brasil, o sol se ergue, lançando uma paleta de cores laranja sobre uma vastidão sem fim. O calor ondula no chão, criando miragens distorcidas. Em meio a essa desolação, um grupo de cangaceiros emerge como um oásis rebelde. Eles têm o tipo de confiança que só vem de viver à margem da lei e da sociedade. Botas empoeiradas, chapéus largos e lenços cobrindo o rosto - eles são o próprio espírito do sertão.
Cortamos para uma cidadezinha aninhada na curva de um rio seco. A cidade tem aquela aparência desbotada de algo esquecido pelo tempo, mas ainda está viva. Na praça central, o zumbido da atividade: mercadores vendendo, crianças brincando, velhos murmurando. Em um canto, sob a sombra rala de uma árvore, um GRUPO DE HOMENS de uniforme observa. São as forças volantes. Entre eles, um homem se destaca – o delegado JEREMIAS. Ele não é do tipo que se mistura facilmente. Seus olhos são incisivos, sempre avaliando, sempre planejando. Ele observa de longe uma igrejinha datada de 1908.
A igreja, uma estrutura branca e simples, se ergue orgulhosamente no centro da cidade. Dentro, o ar é fresco, um alívio bem-vindo do calor escaldante lá fora. Velas tremeluziam, jogando sombras nas paredes rústicas. No púlpito, PADRE ISRAEL. Um homem de meia-idade que tem a gravidade de quem viu demais e carrega o peso de segredos não contados. Sua voz, ao começar sua homilia, é suave, mas carrega uma paixão ardente, uma dedicação à sua fé e à sua comunidade.
Enquanto prega, o padre frequentemente desvia o olhar para uma figura distinta na congregação: DORINHA. Vestindo um lindo traje de seda vermelho e um chapéu de couro e adornos marcantes, ela se destaca entre os populares. Mesmo sentada, sua postura é a de uma rainha. Seu rosto possui uma beleza atemporal, moldada pelos desafios e experiências do sertão, impossível de ser ignorada. Mas é o brilho rebelde em seus olhos que realmente prende o padre. Há uma faísca, um desafio neles. "Quem é ela?". E quando seus olhares se cruzam, surge uma eletricidade palpável, uma promessa não dita de histórias e confrontos ainda por vir.
À medida que o último eco do sermão se dissipava, a congregação começava a se dispersar também. Entre murmúrios e cochichos, os olhares eram irresistivelmente atraídos para a enigmática Dorinha. Com graça, ela ascende à carroça, que rapidamente se torna apenas uma silhueta distante contra o vasto horizonte. Padre Israel, numa tentativa de reter a dignidade e o controle, foca-se meticulosamente em arrumar seus pertences sagrados. No entanto, um arrepio na nuca o alerta de que não está sozinho. Levantando os olhos, ele encontra o olhar penetrante do delegado, que, com uma postura descontraída e dominante, repousa na soleira da igreja.
"Padre," ele diz com uma voz cansada, "você tem um momento?". Há algo em sua entonação que sugere que isso não é exatamente um pedido. O padre hesita, depois acena. O delegado se aproxima, e seus olhos, antes tranquilos, agora se estreitam, como os de um falcão.
Puxando um cigarro e iluminando-o com um isqueiro prateado, o delegado diz: "tenho ouvido histórias sobre você." Ele dá uma longa tragada, deixando a fumaça escapar lentamente por entre os lábios. "Dizem que os cangaceiros o respeitam, que veem em você um homem de Deus"
Padre Israel, embora claramente desconfortável, mantém a compostura. "Eu tento ser um homem de Deus para todos, delegado. É meu dever".
O delegado ri, um riso baixo e rouco, carregado de sarcasmo. "Tu sabe quem é aquela mulher do vestido vermelho? Ela dá as caras muito por aqui, é?". À menção do nome de Dorinha, o rosto do padre empalidece. Seus olhos se alargam por um instante, traçando uma sombra de medo. Ele engole em seco, uma tensão visível em seu pescoço. "Já vi ela algumas vezes na paróquia, mas nunca botei o olho nela na cidade não". O delegado observa o padre um instante. "Olhe, padre, tenho uma proposta pra lhe fazer. Uma que pode assegurar que o senhor continue fazendo seu... dever". O silêncio que se instala entre o delegado e Padre Israel é quase ensurdecedor. O mundo parece ter parado. Até os sons típicos da cidade parecem ter diminuído. "E se eu me recusar?". O delegado, por um breve momento, deixa sua máscara de indiferença cair. A ameaça em seus olhos é clara como o dia. "Vamo esperar que o senhor não faça isso, padre. Porque, se fizer, olhe... todo mundo tem seus podre guardado, né verdade?". O delegado varre o ambiente com um olhar atento e analítico. "Igreja bonita essa. De onde será que veio a grana pra ela tá assim?". A implicação é clara. O delegado tem algo sobre o padre, algum segredo que poderia arruinar sua reputação, talvez até mesmo sua vida. "Eu sei quem é o senhor, padre". O padre hesita por um momento, virando a cabeça. Resignado, ele aceita. E assim, no coração abrasador do sertão, uma aliança incômoda é formada, selada com olhares de desafio e promessas veladas de vingança.
Nas areias quentes e nas colinas espinhosas do sertão, vemos um bando de cangaceiros. Eles se movem como fantasmas, mal perceptíveis sob a camuflagem natural das paisagens áridas. Campfires ocasionais são os únicos sinais de sua presença, com as chamas dançando e as silhuetas dos homens contando histórias, rindo e planejando.
E, no meio deles, a estrela mais brilhante, Dorinha. Sentada à sombra de uma árvore, limpando meticulosamente seu rifle. O couro de seu chapéu esconde parte do rosto, mas seus olhos permanecem vivos e atentos.
Seu vestido flui com o vento, e seu riso é contagiante. No entanto, seu rosto carrega um peso, uma sabedoria que vem de anos vivendo à margem. Seu marido, o líder do bando, QUINTA-FEIRA, está ao seu lado, sua presença imponente e dominadora. A forma como ele olha para ela é uma mistura de adoração e posse. A paisagem árida e o silêncio do sertão são quebrados quando Quinta-Feira diz "Como foi a reza?".
Dorinha levanta os olhos para ele, um breve brilho de desafio em seu olhar. "Foi boa", ela responde simplesmente.
Ele a estuda por um instante, com uma linha tensa formando-se em sua testa. "Ocê sabe", começa ele, escolhendo cada palavra com cuidado, "frequentar essas igrejas... pode fazer os 'macacos' ficarem de olho". Usando o termo pejorativo que os cangaceiros tinham para as forças volantes, ele levanta uma preocupação. Ela assente, mas seu rosto revela uma pontada de desconforto. No entanto, a visita de Dorinha à igreja tinha propósitos mais profundos do que a fé. “Conheci o lugar. É pequeno. Uma delegacia. Dois bancos. Será moleza. Eu soube de um carregamento de ouro também”. Quinta-Feira a envolve num sorriso predatório, puxando-a para um abraço possessivo. "Descubra mais sobre esse tal carregamento”. Ela assente, mas nos olhos de Dorinha, há um anseio que ultrapassa qualquer fronteira visível.
No coração pulsante da cidade, a eletricidade no ar é palpável. As ruas estão saturadas de rumores e sussurros, palavras se espalham como fogo selvagem sobre um assalto iminente planejado pelos cangaceiros. Com cada dia que passa, as botas pesadas das forças volantes ressoam com mais frequência nas pedras do calçamento. Elas não estão apenas patrulhando; estão caçando. A cidade inteira parece um gato arqueado, pronto para pular.
E bem no epicentro desse frenesi, encontra-se o Padre Israel. Em um cômodo mal iluminado, o cheiro de velas e incenso pesa no ar. O Bispo, uma figura imponente com os olhos penetrantes, se inclina sobre sua mesa, lançando um olhar severo ao padre. "Vamos lá, padre. Desembucha. O que raios está acontecendo?".
Sem rodeios, Israel relata sua situação. A sombra do delegado, com seus planos sinistros, paira sobre ele. O objetivo? Fazer o padre se infiltrar, usando Dorinha - a nova fiel que tem causado alvoroço com suas visitas frequentes à igreja - como ponte para obter informações sobre os planos do bando de Quinta-Feira.
O bispo levanta uma sobrancelha, intrigado. "Por que não mandar esse delegado à merda e seguir sua vida?". Mas por trás dos olhos do padre, um turbilhão de segredos dança. Há algo que ele não pode, não deve revelar, nem mesmo para o bispo. Com um suspiro pesado, o bispo recosta-se em sua cadeira, esfregando as têmporas. "Se eu fosse você, desapareceria. Pegue suas coisas, vá para outra cidade, outra paróquia. Deixe essa bagunça para trás". A sugestão pende no ar, carregada de implicações e decisões a serem tomadas.
Quando a penumbra da tarde abraça a cidade, a igreja se destaca, um monólito imponente contra o céu pontilhado de estrelas. Por fora, parece um santuário de calma, mas as paredes de pedra abrigam segredos, paixões e lutas internas.
Dentro, a luz dourada das velas revela Padre Israel, absorto em seus pensamentos, empacotando rapidamente seus pertences. Seus movimentos são resolutos; ele está decidido a deixar tudo para trás, a fugir do caldeirão fervente de emoções e perigos.
Então, um rangido suave corta o silêncio. Ele se vira e seu olhar encontra Dorinha. Com a luz da lua banhando-a, ela parece uma visão celestial, quase surreal. Mas aqueles olhos profundos e tempestuosos contam uma história de carne e osso, de paixão e perigo.
"Padre", sua voz é como mel, doce mas com um toque de amargura. O padre, tentando esconder o tumulto dentro dele, responde rapidamente, "Já fechamos, minha filha. Volte pela manhã".
Mas há uma urgência em Dorinha, uma necessidade palpável. Ele acena para que ela entre no confessionário, e o mundo ao redor parece desaparecer. Através das treliças, eles trocam olhares carregados, o silêncio entre eles gritando mais do que palavras jamais poderiam.
Dorinha despeja sua alma. Ela fala não apenas de pecados, mas de sua vida, das batalhas que enfrentou, dos desejos que incendiaram sua alma, mas que foram interrompidos pelas amarradas do casamento. E, tecida em sua confissão, há uma sedução sutil, um flerte descarado dirigido ao próprio homem de Deus à sua frente.
Cada palavra dela é como uma faca, cortando o tecido da compostura do padre. Ele luta, mas é visivelmente afetado. Quando ela termina, há uma pausa, o tipo de silêncio que precede uma tempestade.
Ela emerge das sombras do confessionário, e por um momento efêmero, eles estão presos em um olhar intenso, cheio de promessas não ditas e tentações inexploradas. "Agradeço, padre". E então, como uma sombra, ela se desvanece na escuridão da noite. No rescaldo da confissão, Padre Israel permanece imóvel, um vórtice de emoções o atropelando. O silêncio da igreja amplifica o tumulto de seus pensamentos. Por que ela veio até ele? O que realmente buscava? Cada questão martelando em sua mente torna claro uma verdade desconfortável: ele foi arrastado para uma trama muito mais profunda do que imaginava. Quase em piloto automático, ele começa a desfazer sua mala, as palavras de Dorinha ainda ressoando em seus ouvidos. Há algo nela, um mistério que ele sente uma necessidade urgente de desvendar. Talvez seja redenção, talvez seja tentação, ou talvez seja apenas a necessidade humana de entender. Por agora, ele sabe que fugir não é mais uma opção. Ele precisa de respostas. E algo lhe diz que Dorinha detém a chave para todas elas.
O dia seguinte é uma ressaca. Não daquelas causadas pelo álcool, mas pelo peso das revelações e das paixões não reconhecidas. O mundo do padre parece ter se deslocado de seu eixo. Ele caminha pela cidade, os cumprimentos e sorrisos dos paroquianos parecendo distantes e desbotados, como se ele estivesse vendo tudo através de um véu. A cabeça dele está em outro lugar.
Em um café local, dois homens jogam cartas e falam em sussurros. Um deles lança um olhar furtivo na direção do padre e depois se inclina para o colega, murmurando algo. Palavras como "Dorinha", "cangaceiro" e "ouro" são audíveis. O padre finge não notar, mas cada palavra é como uma faca torcendo em seu estômago.
No entanto, é o encontro subsequente com o delegado que realmente o abala. Em uma ruela sombria, o delegado o aguarda. "Padre," ele saúda com um sorriso sinistro. "Ouvi uns 'zum-zum-zum' sobre uma confissão aí. Que cê acha de contar, hein?". O padre fica estarrecido. “Você está me vigiando?”. O delegado ri. "Eu só estou tentando cumprir meu dever, padre".
Com um suspiro pesado, o padre relata trechos da confissão, habilmente dançando entre revelações e preservando a intimidade da penitente. O delegado absorve cada palavra, seus olhos ganhando um brilho predatório à medida que as peças do quebra-cabeça se encaixam em sua mente. "Então, parece que você não é apenas bom com as palavras, padre," ele diz com um sorriso irônico. "Parece que tem um jeito de fazer as pessoas falarem também".
Padre Israel se prepara para a próxima exigência. E, sem falhar, vem o pedido do delegado. "Haverá um casório na residência do Major. Você, padre, vai celebrá-lo". A perplexidade se desenha no rosto do padre. "Por quê? O que isso tem a ver comigo?". O delegado inclina-se para perto, seu hálito quente contra o rosto do padre. "O Quinta-Feira pode aparecer". Padre Israel, sentindo-se preso, responde: "Não sou treinado para espionar ou prender bandidos, delegado". O delegado dá uma risada seca. "Eu não quero um espião, padre. Só quero que faça o que você faz de melhor: ser padre". E, com um sorriso frio, ele se vira e deixa o padre ali, envolto em dúvidas e apreensão.
A escuridão envolve a sacristia, com apenas o brilho suave de uma vela dançando sobre o rosto delicado da Virgem Maria de gesso. Padre Israel, com suas mãos juntas, murmura preces - desesperado por uma faísca de clareza ou um sinal divino em meio ao caos que é sua mente. Subitamente, a antiga porta de madeira da igreja geme, abrindo-se lentamente. Uma luz estranha e ofuscante irrompe, lembrando as descrições fantásticas de contatos imediatos. É como a luz de um óvni. A curiosidade supera o medo, e o padre é inexplicavelmente atraído por ela. Ao atravessar a porta em silêncio, o cenário muda drasticamente. O terreno árido e desolado do sertão o envolve, mas em meio à paisagem severa, um oásis se revela. Há um lago oculto, suas águas transparentes espelhando o céu azul profundo. E à margem do lago, está ela - Dorinha. Ela se move com graça felina, seu vestido vermelho fluindo como sangue contra a terra. Com um olhar ardente, ela desliza as alças do vestido, revelando-se diante do padre. O ar fica carregado, cada batimento cardíaco, cada respiração amplificada pelo silêncio. Aproximando-se dele, ela pressiona seus lábios contra os do padre, uma promessa silenciosa de pecado e redenção. Ele se entrega ao momento, mas quando seus olhos se abrem, a figura sedutora de Dorinha se transforma no rosto grotesco de Satanás. O padre acorda abruptamente, seu coração disparado, o suor escorrendo por sua testa. Era um sonho (ou pesadelo) - um vislumbre das tentações e conflitos que fervilhavam em seu subconsciente, preparando-o para o turbilhão do casamento no dia seguinte. Um aviso, talvez, dos desafios que ainda estavam por vir.
O sol do sertão começa a declinar, dando lugar a sombras longas e melancólicas que se espalham pelo chão. Em meio ao silêncio opressor do entardecer, a casa do Major vibra com a celebração de um casamento. O som alegre de risadas, conversas e taças tilintando flutua no ar, uma estranha mistura de esperança e apreensão.
Dentre a multidão de rostos conhecidos e influentes, um se destaca: o padre. Ele observa a multidão com olhos atentos, mas seu olhar é constantemente desviado para a entrada, esperando o inevitável aparecimento dos cangaceiros. Porém, à medida que a noite cai, parece que suas preces foram atendidas. A banda começa a tocar um baião animado, e o delegado, reconhecendo que a missão se mostrou infrutífera, lança um olhar de desdém para o padre e decide partir.
Mas a calma é efêmera. Justo quando o padre começava a relaxar, a atmosfera muda drasticamente. Os cangaceiros, comandados pelo temido Quinta-Feira, fazem sua entrada triunfante. O silêncio é ensurdecedor. Todos os olhos estão fixos neles, e o clima de celebração rapidamente se transforma em terror palpável.
Quinta-Feira, com sua postura audaciosa e sorriso malicioso, questiona sua falta de convite. "Como assim ninguém me arribou pra essa farra?". Seu olhar varre a multidão, parando para provocar a noiva e, em seguida, o padre. Mas o que realmente prende sua atenção é Dorinha. Os dois compartilham um momento carregado de tensão, história e desejo inconfessável. O padre teme o que está por vir.
A noite avança, e os cangaceiros tomam o lugar, dançando e bebendo, sua presença dominando o ambiente. O som de suas alpargatas raspa o chão em um xá-xá-xá hipnótico, um contraponto audível à tensão. O padre e Dorinha continuam trocando olhares, um jogo silencioso de sedução e perigo se desenrolando entre eles. Quinta-Feira, percebendo a hesitação da banda em continuar, exige mais música. Ele quer que a festa continue até que os cangaceiros decidam seu fim. Os músicos, temendo represálias, obedecem. Enquanto a noite avança, o ambiente torna-se cada vez mais carregado. O cheiro característico dos cangaceiros - uma combinação pungente de suor, perfume barato e medo - permeia o ar.
Na atmosfera febril da festa, o padre busca um refúgio momentâneo dos olhares curiosos e julgadores. Ele entra em um dos aposentos da casa do Major, um cômodo adornado de forma simples mas elegante. Mas sua solidão é breve: Dorinha, com seu vestido vermelho e olhar provocador, surge como uma miragem. As palavras são desnecessárias; o olhar entre eles diz tudo.
O espaço entre eles diminui rapidamente. As mãos exploram, os lábios se encontram, e o mundo ao redor desaparece. Eles se perdem um no outro, a paixão queimando com uma intensidade que ameaça consumir tudo em seu caminho. O clamor da festa parece distante, abafado pelos gemidos e sussurros que enchem o quarto.
No rescaldo, os dois, ofegantes e entrelaçados, encontram conforto nas palavras. O padre, em um raro momento de vulnerabilidade, revela a tempestade que vive dentro dele. Com os olhos baixos e a voz tremendo ligeiramente, o padre começa a abrir o livro fechado de seu passado. Ele fala de uma mulher que amou profundamente, uma herdeira rica que ele nunca esperou ter ao seu lado. Quando ela foi brutalmente assassinada, o mundo apontou o dedo para ele, acusando-o de ser o monstro por trás da tragédia. Ele fala do dinheiro e do legado de sua falecida esposa, e como ele tentou honrá-la dando aos menos afortunados. Dorinha, seus olhos agora vendo o homem, e não o padre, compartilha seus próprios demônios. Por sua vez, ela pinta um retrato sombrio de Quinta-Feira, um homem que não conhece limites quando se trata de poder e controle. Ela fala de sua posição precária, da cruel realidade de ser a esposa de um homem tão perigoso e de seus temores sobre o futuro. O som súbito de passos se aproximando interrompe o momento. A realidade volta a se instalar. Eles se levantam apressadamente, corrigindo suas roupas e aparência. Antes de sair, o padre, com um olhar suplicante, pergunta como pode encontrá-la novamente. Ela, com um sorriso misterioso, responde: "Não se preocupe. Eu encontro você". E assim, como uma sombra, ela desaparece no corredor, deixando o padre com mais perguntas do que respostas.
Numa pequena taberna rústica, escondida dos olhares da cidade, o padre encontra-se com o delegado. No entanto, o clima é diferente do habitual: o local é sombrio, e o delegado parece desolado, com os olhos injetados e um semblante carregado de dor. "Delegado" o padre começa, notando a mudança, "o que aconteceu?". O delegado toma um gole profundo de sua cachaça, seus olhos se fixando no padre. "Aqueles malditos" ele cospe no chão a evidente amargura em seu peito, "eles mataram uma família inteira na volta do casamento. Agricultores inocentes que mal tinham o que comer".
Um peso cai sobre o padre, o ar ao redor parece ficar mais pesado, e ele sente como se o chão sumisse sob seus pés. Dorinha... ela estava envolvida nisso? O padre se lembra de suas confissões, da vida que ela descreveu ao lado de Quinta-Feira, mas também do seu toque suave e dos momentos íntimos que compartilharam. Estaria ele cego de paixão a ponto de não ver a verdadeira face de Dorinha? O delegado continua, sua voz áspera: "Essa é a natureza deles, padre. Matam porque gostam". Ele olha diretamente para o padre, uma acusação silenciosa em seus olhos. "Você tem alguma informação? Algo que possa nos ajudar?". E agora o padre se encontra em uma encruzilhada moral. Denunciar Dorinha poderia significar sua condenação e a dos demais cangaceiros. Mas ficar calado significaria ser cúmplice das atrocidades do bando. Cada opção tem seu preço, e o padre sente o peso da decisão sobre seus ombros. E escolhe dizer que não sabe de nada.
Sob o véu do crepúsculo, num recanto isolado da cidade, o padre espera ansiosamente. A brisa traz consigo a aridez do sertão e o som distante dos grilos. Dorinha aparece. O olhar do padre é intenso, carregado de questões e angústias. Sem rodeios, ele pergunta: "Dorinha, vocês... o seu bando... vocês mataram aqueles agricultores?". Dorinha o encara, seus olhos refletindo a dureza do mundo em que vive. "Padre, os homens... eles saem à noite, muitas vezes sem dizer uma palavra. Se perdem no breu e só tornam quando o dia já tá clareando. Eu não sei o que aprontam lá fora e, muita vez, é melhor nem saber". Ela hesita por um momento, baixando o olhar. "Fico no coito com as outras mulheres". O padre estuda o rosto dela, procurando algum indício de falsidade. Mas tudo o que vê é a dor e a determinação de uma mulher que enfrentou inúmeras adversidades. O silêncio entre eles se estende, carregado de tensão e possibilidades. Por fim, com um suspiro profundo, o padre confessa: "Quero acreditar em você, Dorinha". Ela levanta o rosto, e seus olhos encontram os dele. "Pois acredite".
A partir daí, os encontros entre eles se tornam mais frequentes. Eles falam sobre a vida, sonhos, arrependimentos. Nessas conversas, o mundo ao redor desaparece. O romance se desenvolve em meio a risadas e momentos compartilhados sob a lua. Mas, como em qualquer história tarantinesca, a paixão é intercalada com perigo. A cada encontro, eles correm o risco de serem descobertos. E, a cada beijo roubado, a ameaça da traição e do desastre paira sobre eles. E, enquanto a relação deles floresce, a cidade fervilha com rumores. Pedaços de conversas são ouvidos nas ruas, nos bares, nos mercados: "O padre e a mulher do cangaceiro", "O que será que tá passando na cabeça deles?", "Isso num vai prestar". O delegado, é claro, ouve esses sussurros. E embora ele ainda não saiba de todos os detalhes, um sorriso astuto se forma em seus lábios. Ele sabe que, em breve, terá o que precisa e pode usar essa história ao seu favor.
À medida que a escuridão engole a cidade, uma conspiração se desenha nas profundezas de uma gruta oculta. Entre fendas e estalactites, mapas antigos são estendidos sobre uma pedra áspera, cada marca e contorno sendo estudado com olhos famintos. Quinta-feira, com sua postura autoritária e olhar predatório, comanda a reunião. Ele desenha uma rota com o dedo, delineando o trajeto de um comboio recheado de riquezas. "Esse será nosso grande golpe, cabras. Um comboio cheio de ouro" ele declara com fervor. "A chave para nossa liberdade, para o fim dessa vida maldita. Dorinha trouxe a sorte grande pra gente". Dorinha, a poucos passos dele, absorve cada palavra, cada nuance do plano audacioso. Embora sua expressão se mantenha neutra, seu coração acelera, e uma enxurrada de pensamentos corre por sua mente. A magnitude do risco é clara para ela, e Dorinha sabe que esse plano, se bem-sucedido, não apenas encherá seus bolsos, mas também pode ser a porta de saída deste mundo. Enquanto os outros discutem detalhes, ela se perde em reflexões. Um futuro, talvez um lugar seguro, longe da brutalidade e da incerteza que têm sido sua realidade. A chama da esperança, tênue mas persistente, acende-se em seu peito.
O sol mal começou a iluminar a cidade quando a silhueta de Dorinha se delineia na entrada da igreja. O interior fresco e sombrio do santuário parece mais um contraponto à sua presença incandescente. Padre Israel, em meio aos preparativos para a missa, levanta os olhos e capta a urgência no semblante de Dorinha. Ela se aproxima, respira fundo e, com um olhar determinado, despeja a verdade: os detalhes meticulosos do assalto, a rota do comboio e os planos de fuga. E então, com uma pausa carregada de significado, ela faz a proposta inesperada: "Nós dois... Podemos pegar esse ouro, deixar tudo para trás. Começar uma vida nova, longe de tudo isso". O padre a analisa, tentando discernir as camadas daquela oferta. A morte recente dos agricultores após o casamento paira como uma sombra sobre sua consciência. Aqueles olhos inocentes, aquele sangue derramado. Ele sente o peso da responsabilidade e a culpa, pensando que poderia ter feito algo para impedir aquela tragédia. Ela adiciona, hesitante: "A questão é o Quinta-feira. Ele tem olhos e ouvidos por toda parte. Ele não é alguém que se passa para trás". Há um silêncio palpável entre eles. Então, com uma firmeza que surpreende até a ele mesmo, o padre diz, com olhos carregados de resolução e um tom mais escuro: "Podemos cuidar dele".
Dorinha recua um pouco, surpresa pela transformação do padre. O homem que ela vê agora não é apenas o líder espiritual da cidade, mas alguém pronto para trilhar um caminho perigoso e sombrio. Por um instante, entre os bancos de madeira e os vitrais coloridos, o desejo, a vingança e a redenção se entrelaçam de uma maneira que mudará o destino de ambos para sempre. Mas, enquanto eles falam, um pequeno detalhe escapa à sua atenção: uma sombra na janela, um vulto que desaparece rapidamente. Alguém os viu.
A notícia sobre o grande assalto chega ao delegado rapidamente, através de um informante que espionava o padre e Dorinha. Ele mal pode conter sua excitação. Este é o momento pelo qual estava esperando. O delegado então, armado com as informações que possui, monta sua emboscada. Ele posiciona seus homens em locais estratégicos, cada um pronto para fechar a armadilha quando o momento chegar. Ele sorri, confiante de que sua vitória está próxima.
O líder dos cangaceiros, percebendo a mudança no comportamento de sua esposa, começa a desconfiar. Durante uma noite, após um copo de cachaça a mais, ele confronta Dorinha, sua voz um rugido ciumento. "Há algo que você não está me contando" ele acusa. Ela nega, mas a desconfiança está plantada.
Enquanto isso, o delegado intensifica sua operação. Ele reforça as patrulhas, espalha informantes e até mesmo começa a intimidar os locais para obter qualquer pedaço de informação. Há um cheiro de perigo no ar, e a cidade inteira parece estar segurando a respiração.
Na véspera do audacioso assalto, sob a quietude do sertão, Dorinha e Padre Israel encontram-se às escondidas. Sob a sombra protetora de uma árvore centenária, os planos finais são discutidos em sussurros fervorosos. No entanto, a paz momentânea é interrompida quando os faróis de uma patrulha cortam a penumbra como uma faca afiada, dirigindo-se diretamente a eles. Sem pensar duas vezes, Dorinha, com seus reflexos afiados, agarra o padre e o arrasta para dentro de uma casa abandonada nos arredores, um bar com as portas fechadas, onde uma mesa de bilhar velha e carcomida pelo tempo é o único indício de presença humana por ali. Lá, na escuridão quase total, apertados juntos, sentem seus corações pulsando com força, a batida ensurdecedora preenchendo o silêncio da noite, enquanto o perigo se aproxima. A adrenalina e o medo acentuam seus sentidos. Dorinha pode sentir a respiração quente e pesada do padre contra sua bochecha. E, nesse instante, no ápice da tensão, seus lábios se encontram. Não é um beijo suave ou exploratório. É urgente, desesperado; um beijo de quem sente que o mundo pode acabar a qualquer momento. Um beijo que fala de perigo, de desejos proibidos e de um amor nascido nas circunstâncias mais inusitadas. Quando os faróis desaparecem no horizonte e a escuridão os envolve novamente, eles lentamente se afastam, com respirações irregulares. O silêncio que se segue é preenchido apenas pelo zumbido noturno dos insetos. Ambos sentem o peso da realidade; cientes de que, em um mundo onde a morte espreita em cada esquina, aquele beijo roubado poderia ser o último.
Dorinha cruza a entrada do coito com o peso da atmosfera se tornando tangível em seus ombros. Ela pode sentir, mais do que ver, o clima denso que envolve o bando. Os murmúrios e risadas típicas dos cangaceiros estão agora afogados por um silêncio ensurdecedor, rompido apenas pelo ocasional relinchar de um cavalo ou o ranger de uma bota.
No centro deste palco de tensão, Quinta-feira apresenta-se mais furioso e errático do que Dorinha já vira. Seu olhar agudo e desconfiado passa por cada membro de seu grupo, como um falcão procurando sua próxima presa. Há um espião entre eles, alguém traiçoeiro o suficiente para jogar um jogo perigoso com o delegado. A cidade está repleta de policiais. Um ataque nessas circunstâncias seria suicídio e Quinta-feira não consegue lidar com essa frustração.
Dorinha, com sua perspicácia aguçada e intuição, percebe que está pisando em território minado. Ela se aproxima de Quinta-feira, tentando colocar um pouco de juízo naquela mente agitada. "Talvez devíamos pensar direito, rever a hora do ataque", sugere, mas suas palavras encontram orelhas surdas.
Impulsionado por um ímpeto feroz, Quinta-feira, em um gesto abrupto e impiedoso, abate um dos seus, um jovem cangaceiro que mal viu a vida além das dunas do sertão. A mensagem é clara e ressoa na espinha de todos os presentes: traição é recompensada com a morte.
Então chega o dia do grande assalto. Carcomido pela culpa e preocupado, o padre busca redenção e encontra o delegado. Olhos nos olhos, o padre revela os detalhes sombrios do plano de assalto. Ele confessa seu envolvimento com Dorinha, seu amor avassalador que o fez trair sua própria essência. Ele detalha o ataque ao carregamento de ouro e súplica apenas uma coisa: que Dorinha seja poupada de qualquer dano. Ele fornece a localização do ataque e o delegado começa imediatamente os preparativos para capturar os cangaceiros.
Sob o calor escaldante, os cangaceiros, liderados por Quinta-feira, posicionam-se ao longo de um trilho de trem, esperando o carregamento prometido. Seus olhos estão fixos no horizonte, buscando qualquer sinal do trem. E ele chega. Com um rugido ensurdecedor, o trem irrompe pela paisagem e os cangaceiros atacam. Mas, quando o vagão é aberto, a surpresa: ao invés de ouro, uma chuva de carvão cai sobre eles. Eles foram enganados. A confusão é seguida por uma barragem de balas. As forças volantes lançam um ataque sobre os cangaceiros, transformando o local em um campo de batalha.
CORTAMOS PARA UM FLASHBACK. A verdadeira maquinação: Padre Israel e Dorinha, em um jogo de inteligência e traição, enganaram ambos, o delegado e Quinta-feira. Ambos foram levados ao mesmo ponto de emboscada, enquanto Dorinha, com um grupo de cangaceiros leais (e que queria se vingar da morte do jovem companheiro), realizam o verdadeiro assalto sem derramar uma única gota de sangue.
De volta ao caos dos trilhos, a batalha entre os cangaceiros e as forças volantes alcança seu ápice. O som estridente das balas, os gritos, o cheiro de pólvora. Quando o silêncio finalmente retorna, é um silêncio de morte. Muitos jazem caídos, incluindo Quinta-feira, seu corpo inerte no solo árido. O delegado, com a satisfação de ter cumprido seu dever, percebe que foi usado como um peão em um jogo muito maior.
Na alvorada, a pequena cidade começa a se agitar. O delegado, com seu chapéu inclinado para sombrear os olhos, chega à igreja com passos pesados. Ele está impaciente, um ar de fúria contida o envolve. Ele procura, acima de tudo, Dorinha, a chave de todos os seus problemas.
Ao encontrar o padre, os dois homens trocam olhares que dizem mais do que palavras poderiam. "Onde ela está?". A voz do delegado é baixa, mas carregada de ameaça. O padre, com sua postura inabalável, responde: "Não sei, delegado".
A paciência do delegado se esvai. "Você acha que pode protegê-la de mim?", ele zomba, lançando um olhar desafiador para os fiéis que se reuniam. "Você realmente quer que eles saibam quem você é, 'padre'?". Sem hesitar, o padre sobe ao altar, com todos os olhos voltados para ele. "Bom dia, meus caros. Antes de darmos início gostaria de dirigir algumas palavras pra vocês. Talvez vocês não saibam, mas eu já tive uma esposa. Meu nome não é Israel, mas sim Bartolomeu". O silêncio que se segue é quase ensurdecedor. Enquanto o padre se revela, somos subitamente conduzidos ao interior opulento de um vagão de trem. Lá, Dorinha, com ares de uma dama sofisticada e sua identidade escondida sob um novo visual, está sentada, parecendo distante e reflexiva. A voz do padre continua:
"Durante essa andança, a gente se bate com escolhas que nos forma, que traça os rumos e os retos do carreiro que pegamos. Passei ano se escondendo de medo e de assombração, correndo de um passado carregado de dor e desconfiança…".
Dorinha se inclina, abrindo sua mala não para buscar pertences de viagem, mas para retirar um maço de cigarros. Ao fazer isso, o zíper da mala se abre um pouco mais, e um vislumbre de barras douradas é revelado, brilhando sutilmente. São as barras de ouro, testemunhas silenciosas do ardiloso plano que ela e o padre elaboraram.
"Mas, neste chão rachado e duro, descobri que amar é, antes de tudo, um ato de bravura. Amar é não ter medo. Não é só paixonite, é uma decisão de se doar pelo bem do outro. E esse gesto de liberdade é a cara verdadeira do amor. Um amor que deixa a gente querer que quem a gente ama siga sua trilha..."
A luz alaranjada do pôr do sol infiltra-se pelo vagão, refletindo nas barras, fazendo-as brilhar com uma intensidade quase mágica. Acendendo o cigarro, a fumaça dança ao redor de Dorinha enquanto ela se perde em pensamentos, olhando a vastidão do sertão pela janela.
"... mesmo que isso signifique um caminho longe dos nossos olhos".
E assim, o sertão, essa extensão interminável e misteriosa, move-se como sempre fez, impassível e eterno, observando as histórias de amor, traição e redenção que se desenrolam sob seu céu ardente do agreste.
FIM.
Escrito por Daniel Duncan
***
Filmes pra ver depois de ler:
Jackie Brown
Deus e o Diabo na Terra do Sol
The Man Who Wasn't There
****
Disco pra escutar depois de ler: